Dominique comentada
Dona de uma obra considerada complexa para o grande público, Dominique Gonzalez-Foerster recebeu, em Literatura Expandida, livro recentemente lançando por Videobrasil e Edições Sesc-Sp, uma abordagem que torna aspectos fundamentais de seu trabalho facilmente compreensíveis. O livro, baseado na pesquisa de mestrado de Ana Pato sob orientação de Lisette Lagnado, lançou também ensejo para o encontro entre a artista, a curadora Daniela Castro e a autora, realizado em 7.3. No encontro, que foi aberto pela exibição de uma obra em vídeo da artista e encerrado por um testemunho da mesma sobre sua produção, entraram em questão o modo como ela manipula referências, arquivos e citações, sua relação com os diversos meios de expor seu trabalho e a presença constante, em sua obra, de seu universo íntimo.
Daniela Castro, que abriu o encontro, iniciou sua fala comentando que a dimensão afetiva que emergiu do contato com a obra de Dominique Gonzalez-Foerster por meio do livro levou a uma busca pessoal de um arquivo significativo que servisse de mote para um comentário. Ela criou, então, uma operação alegórica em que invocou referências de como a construção narrativa pode passear por diferentes estruturas: seja a circularidade das Mil e uma noites, em que Sheherazade conduz o sultão por suas histórias interconectadas e assim se livra da execução, ou as múltiplas formas de narrativa em Avalovara, de Osman Lins, em que um desafio linguístico serve de mote para o agenciamento pessoal da própria liberdade. As diversas configurações que as narrativas adquirem têm a capacidade de pôr em cheque as oposições categóricas entre noções como vida e morte, início e fim, liberdade e confinamento.
Em ambos os exemplos invocados pela curadora, parece haver uma ação metonímica, uma operação que substitui elementos significativos para produzir novos sentidos. Isso lhe parece ser algo presente também no trabalho da artista francesa e na pesquisa de Ana Pato, que articulam, ambas, citações que têm importância interna e também relação entre si. Castro menciona ainda Simone de Beauvoir que, em Para uma filosofia da ambiguidade, afirma que, sendo a morte inteligível, a vida nada mais é do que a atribuição de sentido à existência. A arte de Dominique teria uma capacidade semelhante, de erigir discursos e proposições a partir de uma matéria que só conhecemos sob o prisma de seu destino final, correlato de morte: o arquivo.
Na sequência, a fala de Ana Pato, em consonância com a pesquisa em questão, construiu, sob o título Armadilha para o espectador de narrativa, um comentário autoral por meio de referências e citações, veladas ou expressas. Tendo como ponto de partida uma fotografia anônima do acervo do English Heritage (acima) sobre a qual elaborou uma ficção, a autora revela que sua aproximação com a obra de Dominique aconteceu como um processo de descoberta e fascínio pessoal envolvendo pesquisa, reflexão e invenção. Como ela afirmou, “com tantas coisas para tomar emprestado, sinto-me feliz se posso roubar algo, modificá-lo e disfarçá-lo para um novo fim. O novo poeta não se reconhece mais como o “autor”, mas como aquele que é capaz de selecionar, de permutar, de corromper a biblioteca gigantesca em que o mundo se transformou. O modo de leitura que esta nova poesia sugere não é mais tampouco o mesmo. Para ler, é preciso montar as peças de um quebra-cabeças”.
Em contraste com um contexto em que se trata de identificar informações verdadeiras e falsas, ao examinar e emular em registro ensaístico a obra de Gonzalez-Foerster, “essa distinção perde o sentido quando passamos a considerar as formas não mais como descobertas (aletheiai), nem como ficções, mas como modelos. Fazia sentido, antigamente, diferenciar a ciência e a arte, o que hoje parece um despropósito. Dominique articula sua experimentação envolvendo o texto literário e aproximando-se do método e do pensamento de autores contemporâneos que, diante das impossibilidades de um mundo onde tudo já foi escrito, exortam uma cultura da citação”.
Confira acima o registro em vídeo do evento.