Artistas do Oriente Médio usam registros históricos para debater intolerância
Leia abaixo a matéria de Silas Martí publicada em 22.10 na capa do caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo:
"Diga o que você vê daí de cima", pede o presidente. "Vejo meu país em todo seu esplendor e beleza, suas praias magníficas, montanhas e vales ondulantes", responde o astronauta lá do alto, numa conversa exibida ao vivo pela televisão estatal.
Esse país era a Síria, vista do espaço por Mohammad Faris, que fez parte de uma expedição russa em 1987 e foi o último cosmonauta árabe a orbitar a Terra. O presidente era o ditador Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad, que hoje enfrenta a sangrenta guerra civil que já matou mais de 100 mil pessoas e expulsou 2 milhões delas do país.
Num vídeo do artista libanês Ali Cherri, o diálogo entre o ditador e o astronauta é ilustrado por imagens do início do conflito há quase três anos, quando o regime de Assad deu ordem para retirar das ruas de Damasco as estátuas dele e do pai, evitando que elas fossem destruídas em meio à onda de revoltas.
Esse curto-circuito temporal da obra de Cherri é a tônica de grande parte dos trabalhos de artistas do Oriente Médio e de países como Paquistão e Irã que estão na próxima edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que começa em novembro em São Paulo.
Cena do filme 'Pipe Dreams', do artista libanês Ali Cherri, que está no Sesc_Videobrasil
Essa e outras obras libanesas e israelenses mergulham nos arquivos da região para traçar um paralelo contundente com o presente --e mostram que nada ou quase nada mudou de lá para cá naquele terreno fértil em convulsões políticas.
"De um lado, vemos Assad falando no auge de seu poder", descreve Cherri. "E, do outro, seu filho removendo suas estátuas, morrendo de medo. Isso diz muito sobre a construção da imagem de regimes totalitários. E também revela a dinâmica comum da região, em que líderes revolucionários sempre acabam virando grandes ditadores."
O paralelo com imagens históricas também ajuda a reinterpretar os vídeos da zona de guerra vistos em tempo real ao redor do mundo, do horror das vítimas dos ataques com armas químicas na periferia de Damasco à cena chocante em que um rebelde aparece comendo o coração de um soldado sírio. "Essas imagens mais confundem do que ajudam a enxergar melhor a situação", afirma Cherri.
Bola de neve
Tentando desfazer equívocos causados por imagens veiculadas fora de contexto, artistas como o israelense Dor Guez e o libanês Akram Zaatari, que esteve na última Documenta, em Kassel, na Alemanha, vêm criando arquivos com outros tipos de registro histórico dessa região.
Guez traz ao Videobrasil obra de seu "Arquivo Cristão-Palestino", projeto que reúne imagens de álbuns de família dos palestinos que se dispersaram pelo mundo desde a criação do Estado de Israel, em 1948.
"Esse é um ano importante no arquivo", conta o artista. "É um conjunto de imagens que cresce como uma bola de neve. Já tem milhares de fotos que viraram uma plataforma para preservar a memória desses palestinos."
Nesse ponto, embora trate de uma parcela da população, Guez tenta discutir o que está na raiz do conflito entre palestinos e israelenses. "Todas as brigas na região têm a identidade como base", diz o artista. "Mas a história tem camadas distintas, não há só uma versão. E nacionalidade é um conceito artificial."
Da mesma forma que Guez constrói um arquivo palestino e cristão, o libanês Akram Zaatari criou uma fundação que reúne fotografias da diáspora árabe pelo mundo, começando com imagens que sobraram nos estúdios fotográficos destruídos nas guerras que arrasaram Beirute.
Fora da capital libanesa, Zaatari mostra em São Paulo não essas imagens, mas uma ficção intimista, em que retrata o começo e o fim de relacionamentos homossexuais por meio de uma coreografia minimalista, em que um homem tira a roupa de outro contra um fundo branco.
"É uma parábola sobre inícios e términos amorosos", diz Zaatari. "É uma dança em que se repete sempre o mesmo tipo de drama humano."
De fato, Zaatari, que é um dos artistas mais relevantes do Oriente Médio, costuma usar o campo minado que é a homossexualidade no universo muçulmano para discutir questões mais amplas --o homoerotismo como metáfora para uma série de outras impossibilidades da região.
"Todos os meus filmes são comentários sobre o que acontece no Líbano, na Síria", diz o artista. "Mas prefiro pensar nisso como algo sobre o fracasso do amor e o começo de um novo amor. Pelo menos é isso que eu espero."
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