O sentido de se falar sobre o Sul
Com o título “Territórios do Sul: experiências, cidades e fronteiras”, o terceiro encontro do Foco 2 dos Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, Vetores e Inflexões, seguiu a temperatura da cidade de São Paulo e aqueceu nesta manhã, com o debate em torno do Sul geopolítico: “Não vejo mais sentido em se falar sobre o Sul em um momento em que as barreiras estão sendo rompidas, onde existe uma dissolução do sentido de fronteiras e uma grande fragmentação. A questão não é mais de passaporte”, polemiza o artista nascido no Líbano, Akram Zaatari. Em defesa do Sul, os curadores Eduardo de Jesus, Solange Farkas e Moacir dos Anjos tomaram a fala.
“Desde que o Videobrasil começou a focar neste tema, não foi com a intenção de criar uma polorização, nem de opor o Sul ao Norte, mas de buscar uma horizontalização, de dar voz aos artistas de países sobre os quais a gente sabe quase nada, mas que tem uma produção artística fortíssima”, afirmou Solange Farkas, na plateia do encontro que contou ainda com a presença do artista chinês Morgan Wood, de Mahardika Yudha, da Indonésia, e da brasileira Lais Myrrha, com mediação de Moacir dos Anjos, curador e coordenador de artes visuais da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.
Desde 1992, o Videobrasil tem focado na produção de artistas do Sul geopolítico, formado por países que estão fora do eixo hegemônico da América do Norte e da Europa. Isso, muito antes da intensificação deste sentido de deslocamentos e da internet ter possibilitado a circulação e o aumento das trocas. “A gente sabia muito pouco de nós mesmos. A arte que a gente conhecia era basicamente dos países da Europa e dos EUA. Mas o que me interessava naquele momento, e me interessa até hoje, é conhecer o imaginário e as poéticas dos artistas destes países sobre os quais mesmo agora nós sabemos muito pouco. O Festival Sesc_Videobrasil é uma Plataforma de acesso e visibilidade para esta produção, que raramente vemos nas bienais e mostras internacionais mais tradicionais”, explicou Solange.
Para Eduardo de Jesus, é ainda muito importante reafirmar este discurso, uma vez que as diferenças econômicas e sociais ainda existem e são gritantes. “Apesar de acreditar que hoje as fronteiras são fluidas, criando “territórios redes”, a questão do Sul ainda é central no Brasil e na América Latina. São milhões de excluídos”. Moacir dos Anjos complementou a fala de Eduardo, reafirmando que noções de fronteiras ainda fazem muito sentido para os mexicanos que tentam atravessar para os Estados Unidos, por exemplo. Mas que o debate é realmente mais complexo, pois esta questão de Norte e Sul não existe apenas no sentido geográfico mais tradicional, mas que existem sul e norte dentro do próprio Sul – e até dentro do Norte. “Existem simetrias de poder entre o Sul e o Norte. E é justo sobre Poder que estamos no fundo falando aqui, o tempo todo. Sobre o poder da representação. Sobre diferenças que se afirmam a partir do modo como processamos as informações que recebemos. São como sotaques. Mesmo falando em inglês e produzindo com a tecnologia mais sofisticada, a voz do artista está presente, carregando o seu ‘sotaque’”, ressaltou Moacir, em um encontro que ao final reafirmou a importância do foco no Sul do Festival Sesc_Videobrasil.
Mercado de Arte, conflitos, fronteiras e miscigenação
Nascido em Hong Kong, Morgan Wong trabalhou entre os anos de 2009 e 2010 em Pequim, cidade que, além do crescimento econômico, tem apresentado uma vertiginosa expansão de sua cena artística nos últimos 15 anos, sobretudo por questões de mercado. Perguntado por Moacir dos Anjos acerca dessa influência mercadológica e do governo chinês sobre a produção artística, Wong afirmou que não há uma oposição binária entre arte e mercado e arte e governo naquele cenário. Mas cita que muitos prédios, inclusive alguns de valor artístico ou que abrigam galerias e exposições, têm sido demolidos em Pequim. Mesmo assim, os artistas locais não se calam. “Temos feiras e mostras que protestam contra essas demolições”, contou. Segundo ele, o mercado de arte de Hong Kong tem vivido o mesmo crescimento que o da China, impulsionado pelo desenvolvimento econômico, e diversos artistas do chamado Norte, sobretudo Europa, têm se estabelecido na região por conta disso.
Akram Zaatari, que trabalha com fotografia, vídeo e performance, falou sobre a experiência da Fundação Imagem Árabe, criada em 1997 com o propósito de estabelecer um espaço para a representação iconográfica da região, criticando sua concepção inicial, que ele considera problemática. “Estamos falando do mundo árabe como um ‘cinturão’ geográfico ou artístico?”, questionou.
Segundo ele, essa concepção original já foi abandonada e, hoje, a Fundação, que ele diz ter sido fundamental para diversos artistas, presta um serviço ao disponibilizar o arquivo fotográfico do mundo árabe para consulta e, ainda, auxiliar na criação artística, ignorando as fronteiras geográficas entre os países da região. Além de falar um pouco sobre o seu processo criativo, Akram falou também sobre o trabalho apresentado nesta mostra, The End of Time, onde ele parece deixar de lado questões fortes em obras anteriores, como conflito, território e memória, para focar na questão da sexualidade. “De fato, nunca produzi pensando no que era ou não permitido no meu país. Fiz uma obra falando sobre o ato de se apaixonar, e se desapaixonar, sobre a impossibilidade das relações. A gente vive fazendo de conta que a lei não existe, mas, de fato, ela existe, e talvez de alguma forma esta questão esteja ali”, comentou Akram, que vive em Beirute, no Líbano, onde a homossexualidade é considerada crime e punida com prisão.
O artista indonésio Mahardika Yudha, que passou uma temporada na Índia, falou da sua imersão na realidade local e contou que foi a partir de sua integração com aquela realidade, e as pessoas que vivem nela, que seu trabalho e sua identidade começaram a ser compreendidos. “Eu fui surpreendido quando cheguei, pois estava no carro quando uma bomba explodiu perto de mim. Mas, aos poucos, esta questão do conflito e da violência foi sendo substituída pelo dia a dia, pela convivência com as pessoas. Eles me perguntavam o que eu estava fazendo lá, por que registrava aquele porto”, contou. “Era como se eu estivesse fazendo um ‘workshop’ junto com o povo.”
A brasileira Lais Myrrha, a última a falar, explicou a relação de sua instalação, Teoria das bordas, com a questão da miscigenação. “É um trabalho que me permite tratar de diversas questões que me interessam, como os limites, as fronteiras do Sul”, disse. Definido pela própria artista como uma investigação que lança uma metáfora pela mistura de cores, a instalação é interativa. Nela, num piso feito com pós de mármore preto e branco estão dispostos separadamente no chão para que as pessoas passem por eles e os arrastem, misturando-os e criando essa ideia de miscigenação, que assim como no Brasil, é complexa. “Aqui existe esta falsa ideia de que por sermos miscigenados, há uma hamonia, que não existem diferenças, mas a gente sabe que não é bem assim. Na obra, também não. Não é como o liquido, em que o preto e branco virariam uma coisa só, nova, cinza. Essa mistura se dá lentamente. O material (pó de mármore) é muito pesado. O branco e o preto conseguem se manter intactos por um maior período de tempo nas bordas, e olhando de perto, microscopicamente, vemos que o branco e o preto continuam ali, em grãos”, explica.