Curador Agustín Pérez Rubio e artistas da exposição Memórias Inapagáveis debatem resgate da história a partir da arte
Como combater a amnésia histórica a partir da arte? A pergunta serviu de premissa para o encontro de abertura dos Programas Públicos de Memórias Inapagáveis – um olhar histórico no acervo videobrasil, realizado no domingo (31/AGO). O evento reuniu mais de 60 pessoas na Zona de Reflexão, espaço dedicado a aprofundar a experiência das obras em exposição no Galpão do Sesc Pompeia.
O entendimento da História como uma construção dos vencedores diante dos vencidos e os mecanismos de revisão e reconstrução da História permearam a discussão, que contou com a mediação do curador da exposição, o espanhol Agustín Pérez Rubio; com a participação do crítico e curador espanhol Octavio Zaya; do diretor e roteirista Enio Staub, diretor de Contestado, a Guerra Desconhecida; do documentarista Aurélio Michiles, diretor de O Sangue da Terra; e dos artistas Jonathas de Andrade, de Projeto Pacífico, e Sebastián Diaz Morales, de Lucharemos Hasta Anular La Ley, obras que compõem a exposição.
A curadora e diretora da Associação Videobrasil, Solange Farkas, deu início ao encontro e explicou que as atividades dos Programas Públicos e a exposição integram-se a “uma série de ações para manter nosso acervo ativo e em contato com o mundo”. Para o curador de Memórias Inapagáveis, Agustín Pérez Rubio, a atual conjuntura – em que, segundo ele, diferentes partes do mundo estão em crise –, “é um bom momento, junto da Bienal, para recuperar parte da consciência política e da perspectiva histórica” de forma a “transformá-la de maneiras muito diferentes, respeitando a ideia de diversidade.”
O crítico e curador Octavio Zaya chama atenção para o teor histórico nas obras apresentadas em Memórias Inapagáveis. “O tema da História e da memória têm uma tradição muito problemática”, afirmou ele, para quem a História é escrita por vencedores, mas está aberta a novas construções. O curador mencionou a importante influência que as imagens exercem sobre a memória – segundo ele, a História pode ser reconstruída pelas imagens. “A reconstrução da História é um tema que faz parte da arte desde seu início”. Ele citou escolas e artistas dos séculos XVIII e XX que “tratavam apenas de elementos do presente em suas obras.” A partir dos anos 60, segundo ele, houve uma mudança de paradigma. “A arte deixa de ser uma visão paralela da realidade. Toda a arte realizada ao longo desse período busca rever, recriar uma história nova sobre a realidade”, afirmou Zaya, para quem realizações como a do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, ao longo dos últimos 30 anos, têm papel fundamental nessa recriação.
A visão da História como uma versão dos “vencedores sobre os vencidos” ficou evidente para Enio Staub no momento de produção do documentário Contestado, a Guerra Desconhecida. “Esse conflito, um episódio desconhecido é lembrado pela História oficial como uma guerra de fanáticos, não pelo direito à terra”, disse o diretor, que foi viver em Santa Catarina para realização do documentário nos anos 1980, período da redemocratização brasileira. Staub afirmou que sua intenção era justamente rever a História a partir do discurso não oficial, do testemunho pessoal daqueles que participaram do conflito. Para impedir que a versão oficial se sobrepusesse aos fatos, o diretor contou que costumava perguntar aos entrevistados se o evento narrado foi de fato presenciado por eles. “Isso foi importante porque muitos repetem o que não sabem. Aí é que vale a História dominante”, afirma. O depoimento de idosos envolvidos na Guerra do Contestado era valioso para o diretor, que entende que aquelas pessoas foram quase forçadas a esquecer: “aquele conhecimento não valia absolutamente nada (para a História oficial)”.
Para Aurélio Michiles, diretor de O Sangue da Terra, “somos fruto do imaginário fílmico em tal proporção que podemos dizer que nossa segunda pele é feita de imagem. Meu trabalho tem a ver com a busca da memória fílmica.” Como amazonense, Michiles contou ter sido naturalmente influenciado por questões indígenas – inicialmente pela proximidade com elas, presentes em seu cotidiano, e, mais tarde por uma busca pessoal por compreendê-las e lutar por elas. Quando frequentou a faculdade de arquitetura em Brasília, foi questionado se era índio. “Naquele momento, fui confrontado por aquela verdade”, relatou. Michiles recebeu uma bolsa da Funarte para documentar a relação da tribo Sateré-Mawé com o cultivo do guaraná no Amazonas. Por meio do livro Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro, soube que os Sateré-Mawé estavam “ameaçados de extinção. Justamente os índios que eu estava estudando. Começou a vontade de fazer um novo trabalho, que não estava planejado.” Foi quanto ele deu início à produção de outro filme, que tratava dos reais temores daquela tribo, vítima dos interesses de uma petrolífera francesa que invadia as terras demarcadas e desrespeitava o Estatuto do Índio com a conivência da Petrobrás e da FUNAI. Indígenas foram mortos, vítimas de explosões em busca de petróleo, e o irresponsável abandono de bombas carregadas de componentes químicos contaminou o solo e afetou quem teve contato direto com os artefatos.
Autor de Lucharemos Hasta Anular La Ley, Sebastián Diaz Morales falou dos elementos que, por vezes, parecem ficcionais ou surreais na realidade, como no caso de seu filme, que fala da luta de prostitutas, travestis e vendedores ambulantes contra o Congresso argentino que, em 2004, votava uma lei que visava impedi-los de trabalhar em certos pontos da cidade. “Eu me interesso muito pelo protesto e pelas pessoas que protestam. Queria desvendar o que significava aquilo naquele momento pós-crise (Corralito) da Argentina, a raiva contra quem está no poder”, afirma o artista que, apesar do interesse local, não quis circunscrever sua obra àquela realidade apenas. “A mim interessava poder falar de uma situação que existe no mundo todo: o povo contra o poder, tentando derrubar uma porta de um prédio onde é escrita essa lei”, diz. “Essa situação tem muitos elementos surreais, que rompem com os códigos normais. A realidade é também uma ficção.”
A ficção e seu confronto com a realidade estão presentes na obra Projeto Pacífico, de Jonathas de Andrade. Sobrepondo o conceito de latinidade à sua identidade brasileira, Jonathas viajou por países da América Latina, compreendendo ser uma “célula de um corpo social Latino Americano”. Na passagem do Chile para a Bolívia, o artista se inteirou da Guerra do Pacífico: “a disputa pelo mar, uma disputa histórica, deixou muitos ressentimentos”, contou o artista que, ao entrar em contato com o material escolar boliviano, vira o quão presente era esse rancor histórico e geográfico. “O material escolar chamava as crianças para lutarem pelo mar.” Enquanto isso, no Chile, a história apresentada era a dos vencedores daquele conflito, mas o país encarou, de 1970 a 1990, seus próprios dilemas políticos, com a sucessão dos regimes de Salvador Allende e Augusto Pinochet. “Eram duas histórias completamente diferentes.” Dessas duas versões distintas e manipuladas em seus respectivos países “veio a ideia de um terremoto que separaria o Chile da Bolívia – que tem a ver também com o isolacionismo do Chile do restante da América Latina.” Durante o projeto, porém, a realidade se sobrepôs à ficção: um terremoto ocorreu no Chile. O artista se viu em um dilema ético: “Pensei na época: ‘eu estou mexendo com uma dor que não é minha’”, conta. “Acabei ligando para pessoas no Chile para entrevistá-las sobre aqueles primeiros dias depois do terremoto. Aquilo entrou no vídeo, como um misto de culpa e necessidade.” No que diz respeito ao Brasil, para ele, após uma geração em “amnésia histórica”, a realidade começou a mudar. “Vide as manifestações do ano passado – com um Estado que volta a reprimir, com as prisões arbitrárias antes da Copa, a tensão militar no Rio de Janeiro, a questão indígena...”
A exposição fica em cartaz no Sesc Pompeia até o dia 30 de novembro, de terça a domingo, no Sesc Pompeia.