Perspectivas da violência
Imagem: geoglifo acreano. (Fonte: Diego Gurgel/Secom, Notícias do Acre)
Depois que a ditadura militar pôs em prática seu projeto de ocupação da Amazônia, a floresta passou a ser derrubada para a expansão da fronteira das atividades agropecuárias na região. Contrastando o jogo de luz e sombras projetado pelas copas cerradas que caracterizam as árvores da região, o verde dos novos pastos é pálido, melancólico — uma desolada ausência de mistério que tem revelado estranhas formas geométricas aos olhos mecânicos dos aviões.
São desenhos simples, em geral, círculos e quadrados cavados no chão. Mas são estranhos porque nós, os colonizadores, não esperávamos encontrá-los ali. Desde que o geógrafo Alceu Ranzi os avistou por acaso enquanto sobrevoava a região nos anos 1980, mais de 500 dessas estruturas foram catalogadas, algumas com centenas de metros de diâmetro e datadas de até 2 mil anos atrás.
No artigo “In The Forest Ruins” [em tradução livre: Nas ruínas da floresta], o arquiteto e urbanista Paulo Tavares parte dessa descoberta para mostrar como o desvelamento dos chamados geoglifos acreanos tem alterado profundamente nossos paradigmas sobre como enxergar a Amazônia. À luz dessas estruturas guardadas entre as raízes das árvores, a floresta deixa de ser um lugar sem passado nem história e transforma-se em potencial repositório de civilizações tão complexas quanto as que se caracterizaram por grandes edificações de pedra, como os gregos ou os astecas.
Não deixa de ser tristemente irônico que essa descoberta tenha ocorrido às custas do desmatamento, que põe em risco a própria existência da floresta. A face negativa do aparecimento dos geoglifos é destacada por Paulo Tavares, para quem, mais do que “documento histórico da violência [desenvolvimentista], a descoberta dessas estruturas destrói o imaginário colonial sobre a natureza da floresta” — imaginário que ainda hoje embasa as políticas expansionistas do Estado brasileiro.
A arquitetura e suas armas
O olhar treinado para dar relevo a indícios de violência é uma das principais ferramentas do trabalho de Tavares, que é pesquisador associado da Forensic Architecture, agência de pesquisa com sede na Goldsmiths, da Universidade de Londres.
Fundada em 2011 pelo arquiteto israelense Eyal Weizman, um dos objetivos da agência é fazer com que “a arquitetura, a apresentação artística e a prática curatorial possam levar a uma tecnologia científica mais precisa”, fornecendo provas que possam ser usadas em julgamentos de crimes contra a humanidade. Para Weizman, “a introdução da representação arquitetônica como evidência em tribunais internacionais pode mudar toda a dinâmica de um processo legal”, confrontando juízes e advogados com a configuração espacial dos casos julgados.
Um dos principais objetos de investigação do fundador da Forensic Architecture é o modo como Israel vem realizando a ocupação da Palestina nas últimas décadas. “A arquitetura e o ambiente construído exercem uma espécie de violência lenta”, diz ele em entrevista para a rede de televisão Al Jazeera. Seus estudos mostram que a ocupação israelense foi concebida para, propositalmente, “estrangular as comunidades e vilas palestinas, torná-las lugares impossíveis de se viver. E esse crime foi feito na própria mesa de desenho”.
“A arquitetura é usada pelos arquitetos como uma arma”, afirma Weizman. Seu trabalho e o de outras pesquisadoras e pesquisadores da Forensic Architecture tem como premissa a inversão dessa arma, apontando-a para as instituições perpetradoras de opressão. Essa ação, contudo, não pode ficar restrita a prédios, ruas e outros espaços arquitetônicos tradicionais, fazendo-se necessário abordar os próprios fundamentos da disciplina de outro ponto de vista.
Imagem: mapa da pesquisa “Archaeology of Violence: The Forest as Evidence”
Espaços construídos
Paulo Tavares foi buscar na floresta esse ponto de vista. Em depoimento para o Canal VB, ele afirma que a concepção da Amazônia como “deserto”, mencionada em “In the Forest Ruins”, é constante na epistemologia ocidental — que, desde a Antiguidade greco-latina, enxerga a floresta como antítese da civilização: “Ela é o espaço dos loucos, dos selvagens, dos bandidos, das pessoas que fogem da cidade. É o espaço da irracionalidade”.
Essa tradição conceitual vem sendo contestada pelos mais recentes estudos arqueológicos na Amazônia, que têm Eduardo Neves como um de seus principais expoentes. Estudando a região há mais de duas décadas, o arqueólogo tem se dedicado a demonstrar que a floresta não corresponde a nenhum ideal de mata virgem; pelo contrário, ela é uma construção dos povos ameríndios. Em entrevista para o blog do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos, da Universidade de São Paulo, Neves explica:
“A arqueologia mostra hoje que a Amazônia era densamente ocupada antes do início da colonização europeia, ao contrário do que muita gente pensa. Isso é válido para outras áreas do Brasil também. O que passa é que, em muitos locais, a matéria-prima para construção era o solo, ao contrário de outros lugares onde a rocha era utilizada. Os grupos que aqui viviam sucumbiram rapidamente às doenças trazidas do velho mundo pelos europeus, tais como varíola, sarampo, catapora etc. Quando os primeiros cientistas começaram a viajar pelo interior do país, alguns séculos depois encontraram regiões desabitadas, mas que eram densamente ocupadas antes”.
Essa mudança radical de compreensão, que revela o espaço selvagem como um projeto arquitetônico, foi posta em prática por Paulo Tavares na pesquisa “Arqueologia da violência: a floresta como evidência”, em que o arquiteto identificou o território do povo Waimiri-Atroari, quase inteiramente dizimado durante a invasão da Amazônia pelo Estado brasileiro entre o fim dos anos 1960 e o começo dos anos 1980.
Arqueologia botânica do genocídio
Os Waimiri-Atroari se distribuíam por aldeias autônomas e nômades às margens dos rios Camanaú, Alalaú e Abonari algumas centenas de quilômetros ao Norte de Manaus. Interconectadas por inúmeras trilhas, as aldeias possuíam uma casa comunal no centro de um terreno em forma de elipse, ao redor do qual eram cultivados pomares de frutas e castanhas, além de outras plantas alimentícias e medicinais.
Ao mudar a vila de lugar, os Waimiri-Atroari continuavam utilizando as plantas remanescentes no espaço abandonado, que por sua vez atraíam outras espécies vegetais e animais. A repetição desse processo é característica dos povos amazônicos há pelo menos 2.500 anos, segundo Eduardo Neves, e é responsável pela criação da terra preta, extremamente fértil, que cobre o solo da floresta.
Ao confrontar mapas aéreos do território Waimiri-Atroari com a estrutura botânica da região, Paulo Tavares pôde, por exemplo, diferenciar as plantações recentes das mais antigas, traçando as pegadas desse povo e, consequentemente, localizando as aldeias destruídas ou que foram alvo de remoções forçadas durante a ditadura militar.
O estudo deixa evidente, como o próprio Tavares afirma, que “o Estado brasileiro não estava intervindo num território vazio, revelando, portanto, a existência de uma estratégia planejada para interromper, transformar e aniquilar modos de habitar a floresta que eram considerados inimigos do projeto de desenvolvimento nacional”. A população Waimiri-Atroari, contabilizada pela Funai em aproximadamente 3 mil pessoas em 1972, chegou a 350 em 1983. O relatório da Comissão Nacional da Verdade estima que 2.650 Waimiri-Atroari tenham morrido em decorrência de ação estatal.
Com uma mudança nos métodos de ler o espaço e coletar dados, é possível traçar o que o arquiteto chama de “arqueologia botânica do genocídio”, na qual a história das vítimas sobrevive na trama vegetal dos lugares por onde elas passaram. Esse mesmo método de investigação está sendo usado agora para recuperar judicialmente os territórios Xavante nas terras Marãiwatsédé, no atual estado do Mato Grosso.
No dia 10 de junho, sábado, às 15h, Paulo Tavares abordará essas e outras questões de seu trabalho numa conversa com o público mediada por Gabriel Bogossian, cocurador da exposição Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno, em cartaz até 17 de junho no Galpão VB.
SERVIÇO
O QUE: Conversa com Paulo Tavares e mediação de Gabriel Bogossian. Programa público da exposição Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno
QUANDO: 10 de junho, sábado, às 15h
ONDE: Galpão VB | Associação Cultural Videobrasil (Av. Imperatriz Leopoldina, 1150, São Paulo, SP)
Entrada gratuita