Panorama asiático: artistas dão voz à complexidade oriental
O olhar do Ocidente sobre a Ásia é frequentemente impregnado de um exotismo que termina por impedir uma compreensão mais fiel ou abrangente das complexidades e sutilezas das culturas daquele continente – que obviamente oferece dificuldades para ser descrito de uma maneira geral, já que contém metade da população do planeta. Não por acaso, o malaio Sherman Ong declarou, durante sua estada em São Paulo juntamente com outros artistas da mostra, que tem “um interesse especial pelo deslocamento social". De fato, grande parte da produção artística contemporânea da região dá sua própria visão poética para esse universo simbólico e imagético muito peculiar, gerando novas camadas de significado – e de estranhamento. Os artistas asiáticos presentes nesta edição de Panoramas do Sul apresentam trabalhos que ilustram bem essa cena.
A dimensão performativa, que tem hoje preponderância em grande parte da arte chinesa e de Taiwan, principalmente em fotografia, é um aspecto forte no trabalho de vários desses artistas. Hou Chien Cheng, por exemplo, apresenta em Panoramas a obra All the others, na qual, em pé, parado aproximadamente no meio de uma escadaria de um espaço público de intensa circulação, o protagonista parece questionar a invisibilidade social, o modo como a individualidade pode ser silenciosa e implacavelmente absorvida e anulada pela coletividade. O fato de se tratar de um taiwanês rodeado por caucasianos em trânsito reforça ainda mais a atmosfera de indiferença e solidão que a obra invoca.
A performance surge também com intensidade no vídeo Mongolism (foto acima), do chinês Tao Hui. Nela, o artista circula por cenas e ambientes que, assim como sua indumentária, remetem a uma China típica e folclórica, com traços de teledramaturgia de massa. Mas, assim como no trabalho de Hou Chien Cheng, há uma certa atitude – ou não-atitude – do protagonista que confere à sua relação com o entorno diversos significados. Apesar do deleite visual que a obra proporciona, há um profundo estranhamento nas sequências, nas quais a figura principal, não obstante suas roupas e maneiras chamativas, desliza por cenários e grupos de pessoas em clara desconexão consigo e com o ambiente social. De maneira eficaz, o trabalho questiona as identidades culturais e de gênero, bem como a noção de reconhecimento social e pertencimento. Planos artificialmente simétricos realçam a acidez dessa crítica.
Se uma meticulosa construção visual marca Mongolism, em Motherland (abaixo), de Sherman Ong, é a voz da realidade que emerge. O artista malaio radicado na China explica que tem, ao longo de sua produção, “um interesse especial pelo deslocamento social e pela fala das pessoas que adotaram um idioma que não é o original de sua família. Interessa-me entender o que pode ser chamado de língua-mãe”. Na série de três vídeos que compõem o trabalho exposto em Panoramas do Sul, Ong passeia por assuntos como o desamparo emocional, a memória como ilha de conforto afetivo e, claro, a sensação de (não) pertencimento ao meio. É curioso notar que, ao mesmo tempo em que a câmera de Ong cria uma relação de cumplicidade e intimidade com as três pessoas que narram seus pensamentos, a dimensão socio-política de suas experiências não se perde.
Algo correlato, mas profundamente distinto, faz o chinês Ip Yuk-Yiu: ele atinge um comentário sócio-político a partir de uma obra em que uma característica estrutural pareceria, num primeiro momento, impossibilitá-lo. Em seu vídeo Another day of depression in Kowloon (abaixo), ele não tem o suposto item essencial para um exame etnográfico: não há figuras humanas, e nem sequer imagens de uma cidade real, mas a obra cria, por meio de animações de video game, um retrato simbólico de Hong Kong. O tempo do olhar, as intempéries e a decrepitude urbana fazem lembrar do cinema de Tsai Ming-Liang, mas a obra de Yuk-Yiu tem um nível de concisão muito particular, como se o artista nos colocasse face ao avesso da metrópole, seu vácuo existencial.
O vácuo interessa também a Morgan Wong, outro chinês representado em Panoramas do Sul. Sua videoinstalação Demolishing Rumor contém elementos de performance e aborda as frequentes demolições em seu país, neste caso a do bairro Caochangdi, que tem grande concentração de ateliês artísticos. “Não quero fazer uma crítica típica à situação chinesa”, disse o artista, que também é avesso às visões dicotômicas entre arte e política, e arte e mercado. Assim, ele criou uma obra que preserva as ambiguidades do evento que comenta. Uma construção de tijolos (que é, na verdade, a maquete em proporção 1:12 de um edifício daquele bairro) abriga um monitor em que se vê o artista destruindo, com marretadas, uma maquete similar. As ambiguidades do tema são, portanto, reiteradas pelo caráter metalinguístico do trabalho, cuja veemência é reforçada, ainda, pelo ruído insistente, amplificado, das marretadas.
Ao lado das paisagens artificiais e humanas dos outros trabalhos citados, o vídeo do indonésio Mahardika Yuhda transporta o olhar para uma outra forma de paisagem, situada no limite entre a paisagem natural e a paisagem social. O rio Brahmaputra abrange Nepal, China, Butão, Mianmar e Bangladesh, e constitui uma importante rota de trânsito e comércio – inclusive ilegal. Centrado na movimentação de um porto clandestino, o trabalho associa o papel de separação entre Norte e Sul (que tem o rio pra os indianos) com a ideia de transição entre os meios rural e urbano. Sendo esse o único rio da Índia que tem um nome masculino, a riqueza de sentidos do nome da obra (Suara Putra Brahma, “o som do Brahmaputra”) é ampliada ainda mais.
Por fim, um outro representante do continente asiático já se tornou, de certa forma, um artista brasileiro. Radicado há mais de uma década em São Paulo, o artista e sociólogo japonês Nio Tatewaki baseia sua produção principalmente na fotografia. Suas imagens de São Paulo sugerem um olhar incomum para um estrangeiro: em vez de cenários e paisagens típicos, representativos do que a megalópole tem de mais reconhecível, Tatewaki foca na efemeridade da arquitetura da cidade. Nas suas fotografias de espaços demolidos ou ocultados (série Esculturas do Inconsciente), o artista dá corpos às ausências e impermanências de uma cidade caracterizada pelo dinamismo e pela transitoriedade, que se reflete na dificuldade de estabelecer sua identidade urbanística.
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