Quando o Cruzeiro do Sul fala — statement da curadoria
Quando o Cruzeiro do Sul fala
Solange Farkas e Diego Matos
(diretora do Videobrasil; coordenador de arquivo, pesquisa e acervo do Videobrasil)
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“Eu gostaria, sim, de falar sobre uma região que não consta nos mapas oficiais, e que se chama, por exemplo, Cruzeiro do Sul. Seus primitivos jamais a dividiram. Porém vieram outros, e a dividiram com uma finalidade. A divisão continua até hoje” (Meireles, Cildo. 1969). É desta maneira que o artista brasileiro Cildo Meireles, ainda no longínquo ano de 1969, manifesta a necessidade de explicitar lugares marginalizados e invisíveis ao ocidentalismo, tornando complexa noção de lugar e fabulando a possibilidade de uma reconquista de uma riqueza material e imaterial escamoteada por séculos. Tratava-se na verdade da questão primordial de origem, ou seja, em última instância, a construção de uma outra perspectiva e lugar de fala – no caso, o lugar do indígena. Entretanto, as exceções são muitas e destituem uma dada tradição. A história enquanto ciência nos propõe um método de investigação que legitima a tradição.
Cruzeiro do Sul é uma constelação do hemisfério celestial sul que só é vista desde os lados de cá, inexistente para a cultura européia. Se o seu reconhecimento entra para o campo da cosmologia em tempos de construção da ciência moderna, já nas cosmogonias indígenas era recurso fundamental de existência, origem das coisas e localização, bem antes de aportarem nas terras desconhecidas da América.
Não foi à toa que tal texto, quase um manifesto, foi escolhido pelo artista para representá-lo em catálogo do MoMA para a exposição, hoje histórica, Information (1970). O texto, por vezes poético, por vezes manifesto, é parte do arcabouço poético e político de Cildo, que logo depois produziria a Instalação Cruzeiro do Sul (1969). Tal obra mantêm relação indireta com o texto. Curiosamente, foi em seguida, em meados dos anos 1970 que o vídeo experimental começa a entrar na vida artística brasileira, o que de fato veria a ter protagonismo pela sua portabilidade, reprodutibilidade e acessibilidade.
Desse modo, já no início de uma nova década - os anos de 1980 e com eles o fim de um regime militar de exceção – vemos florescer uma segunda geração de realizadores que vai de encontro à cultura televisiva e dos grandes meios de comunicação de massa. De uma miscelânea de suportes, de linguagens e de modos de operar e experimentar, surge ambiente para um Festival das características do Videobrasil. Se de partida, o interesse era pela produção local, com o passar dos anos definiu-se um protagonismo de colaborar na construção de uma rede internacional que batalharia por tornar presente outras falas de realidades culturais longínquas; todas elas alimentadas pela implacabilidade de suas memórias e de suas vivências.
Em situações à margem ou mesmo em alternativas ao que a cultura de massa normatiza, narrativas outras e trajetórias de vida fora da ordem social ganham atenção especial pela prática contemporânea da arte. Através de dispositivos pertinentes às várias áreas do conhecimento, a figura do artista, intelectual público, identifica personagens e comportamentos sociais diversos que são invisíveis à história. Recorrendo ao poder da memória como entidade individual ou coletiva, resgatam-se outras histórias que transitam do particular ao público. A Associação Cultural Videobrasil, portanto, resgata a arte sob a perspectiva do lugar de fala do artista – um outro contador de fatos livre das premissas da ficção e do documento. Definem-se então dois programas de vídeo que são em essência intercambiáveis.
Programa 01 – A intimidade é o fato (69'59'')
Leva-se em conta as narrativas de cunho afetivo e intimista, dando importância às questões extra oficiais, os dissensos que são limitados pelas interpretações econômicas e ou socioculturais que procuram objetivar a realidade. O programa apresenta pelo menos dois trabalhos de artistas brasileiros, integrados aos outros contextos (Mundo árabe, África e América Latina) que coadunam com condições locais diferenciadas da normativa ocidental. Tais narrativas procuram elucidar questões que forma escamoteadas pelos métodos da história.
Les Feuilles d'un temps (2010), de Baraky Diallo
Crazy of You (1997), de Akram Zaatari
The Apocalyptic Man (2002), de Sebastian Diaz Morales
A Pessoa é para o que nasce (1998), de Roberto Berliner
Sergio e Simone (2010), de Virginia de Medeiros
Programa 02 – A exceção é a regra (64'09'')
Neste segundo programa, a construção narrativa se dá sobre um outro prisma, complementar ao anterior. A imagem captada é de um olhar distinto, cuja sensibilidade está expressa pela vivência social do realizador ou de quem com ele convive. De certo, descontrói-se a linguagem documental, propondo inclusive novos modos narrativos para a linguagem cinematográfica e jornalística. Do mesmo modo que na seleção anterior, momentos da experimentação documental brasileira tomam às rédeas finais do programa.
Bosphorus: A Trilogy (2012), de Bita Razavi
H2 (2010), de Nurit Sharrett
Brisas (2008), de Enrique Ramirez
O Espírito da TV (1990), de Vincent Carelli
Cows (2002), de Gabriela Golder
Projeção complementar
Complementar mas não menos importante, integra à mostra a exibição do longa documental Doméstica (2012) – uma leitura escancarada da vida intima e familiar brasileira, motor de nossa sociedade, mas sempre escamoteada.