Cidade Infinita | Marcio Harum

Cidade infinita

À maneira crítica, o apanhado de vídeos reunidos em Cidade infinita parte de algumas obras extraídas diretamente do acervo da Associação Cultural Videobrasil, sem estar circunscrito a ele. De janeiro a março de 2011, em formato de três publicações FF>>Dossier mensais on-line, a investigação curatorial é mostrada sob a luz da produção de três artistas: Letícia Ramos, Shaun Gladwell e Sebastian Diaz Morales. A escolha dos vídeos, baseada em fatos e antecedentes, parte da primeira hipótese de quando foram vistos por mim, sentado na plateia das últimas edições do Festival Videobrasil. Marcadamente, como o próprio título sugere, a seleção envolve a cidade como ground zero temático, o que faz abrir espaço a especulações estéticas a respeito dos significados deste lugar, e conduz a uma revisão crítica dos trabalhos mencionados.

As obras dos três artistas exibidas aqui são infiltradas pelas condições urbanas de instabilidade. Suas experimentações semidocumentais aferem a cidade como protagonista de um tempo oscilante. Regidas por movimentos lentos e vazios, fantasmagóricos por vezes, suas câmeras estáticas sobrepõem repetidas imagens sem passado, e exigem, ao primeiro instante, um olhar parado, de novo e então. Cada segunda vista de uma mesma imagem em movimento surge transgredida; é gerada por um inesperado vortex.

A trinca talvez tenha sua produção delineada pelo compartilhamento de alguns códigos culturais correspondentes. Não obstante, compactuam com um incerto grau de compromisso geracional. Acima de tudo, procuram um elo em sua praxis, para além da mobilidade propensa a um modelo de voyeurismo barato, que os faça responder à altura de seus anseios –, mas com um estilo de vida incomum, que revelam por meio de autorretratos urbanos, como artistas-personagens.

Letícia Ramos, que participou da mostra competitiva Panoramas do Sul do 16º Videobrasil, em 2007, com a obra Panorâmica 01, figura na curadoria em sincronia com as polias e correias de uma cidade-máquina. Com um poderoso trabalho que atende ao aparato óptico construído pela própria artista, ERBF – Estação radiobase fotográfica (2005-2009) estrutura um conjunto de réguas perfuradas de diâmetros variáveis, calculados para controlar a entrada de luz, para uma assumida e prolongada exposição de película. O artefato apresenta um peculiar prisma, com infinito campo perspectivo de profundidade. O fole da câmera, articulado por pequenos eixos de alumínio, se faz alongar por até setenta centímetros, o que permite tecnicamente a superação da distância focal variante de tal desafio artístico.

Kickflipper: Fragments Edit (2003), do artista Shaun Gladwell, foi exibido na mostra Panoramas of the Imagination, curadoria do australiano David Cranswick, no 16º Videobrasil (2007). A obra lida com a representação poética dos esportes radicais urbanos; ela nos é passada pela contemplação de manobras do skateboarding free style, que faz surgir uma plausível aproximação com um solo de dança. Pertencente a Kickflipping Flâneur, série de trabalhos que mescla signos elucidativos de sua trajetória artística, o vídeo concebe uma possível versão atualizada do significado de flâneur, ao transpor o sentido das ruas da Paris Belle Époque de Baudelaire para a praia de Bondi, hot spot do verão australiano dos dias de hoje.

Seu trabalho anterior, Storm Sequence (2000), segue o mesmo princípio da pintura portrait em movimento real: faz recordar a silhueta de um street dancer que se move sobre as quatro rodas ziguezagueantes de um skateboard. Gladwell abre uma espécie de clareira para o equilíbrio meditativo, voltada ao domínio corporal da técnica, o que serve de solda entre o ambiente urbano e a natureza.

Sebastian Diaz Morales, com dois trabalhos curados na revisão crítica de acervo proposta por Cidade infinita, participou das mostras competitivas das 14ª e 15ª edições do Videobrasil. Foi premiado pelo júri em 2003 com The Apocalyptic Man (2002), realizado durante temporada incursiva de seis meses por cidades das áreas centrais do México. Produzida pelo selo Just Like A That, de Sebastian, é inspirada em trechos do livro Los Siete Locos (1929), do argentino Roberto Arlt. Resvala, em ritmo visual de travelogue, numa iconoclasta expedição descendente por um túnel subterrâneo. Desponta então uma cidade obscura, internalizada como sujeito, escavada com sentimentos extremamente ansiosos, no compasso de uma narrativa angustiante.

Em 2005, o artista voltou ao Videobrasil com Lucharemos Hasta Anular la Ley (2005), que discute formalmente o aperfeiçoamento e o acesso aos efeitos de pós-produção, sem esquecer as especificidades de montagem da obra. Cenas televisionadas de um ataque civil de protesto contra a fachada do parlamento argentino recebem tratamento escurecido, criando uma atmosfera propícia à percepção da cidade como uma arena de combate entre o indivíduo e o Estado. O vídeo transforma assim uma matéria captada como panfleto político, de interesse estritamente jornalístico, em assunto universal, um ensaio que vai além, ao comentar as condições inumanas que afetam todos em sociedade.

Como são e onde estão as cidades em que desejamos viver? O que esperar delas de agora em diante? Cidade infinita tenta capturar os prenúncios de uma década que parecia não ter fim.

Marcio Harum

2011

leia maisrecolher

Sobre arte e política | Carla Zaccagnini

​Sobre arte e política

Quando uma amiga disse que política “es la negociación de subjetividades en el espacio público”, eu bem avisei a ela que usaria a afirmação assim que – ou sempre que – encontrasse o contexto. Pois aqui está o contexto, já que, para falar sobre arte e política, parece-me necessário tentar delimitar esses campos. É difícil e sempre será redutivo, mas é importante. Arte não é qualquer coisa, nem política é uma coisa qualquer.

Na longa aula da noite passada, em que couberam quase todas as indagações, das mais esperadas às menos convenientes, um aluno perguntou-me qual era a minha definição de arte. Talvez porque nesses momentos é mais confortável não estar sozinho, talvez porque éinútil tentar dizer de outro modo algo que já foi tão bem dito, talvez porque fazia mesmo muito tempo que não me perguntava diretamente por uma definição para a arte, talvez por saber do efeito posterior de silêncio e respeito que uma resposta assim certamente teria e que me pareceu desejável, lancei mão da frase de Mário Pedrosa: a arte é um exercício experimental da liberdade.

Agora, pensando em algo que possa ser publicado, não consigo encontrar outra definição melhor. A prática artística que me interessa é um exercício, no sentido que se constrói na tentativa mesma, sem ensaio possível e como processo de aprendizado. É também experimental porque é um método de conhecimento baseado na experiência, porque é sempre um experimento, um projeto-piloto, um protótipo de produto nenhum. E tem, no mais das vezes, por assunto de investigação ou por força motriz, uma pergunta sobre ou um desejo de emancipação, de autonomia, da construção de um sujeito; algo de antialienatório ou – apesar de toda relutância em pronunciar ou escrever esta palavra – de libertário.

Certa do pouco zelo ou da nula inflexibilidade com que a Julieta guarda suas declarações em trânsito, permito-me dar um passo atrás. Antes ainda da negociação de subjetividades, creio que política é uma tomada de posição; é a demarcação de uma posição de sujeito numa esfera pública – seja no espaço público, sobre assuntos de interesse público etc.

Quando penso, portanto, em arte e política, penso nos exercícios e nos experimentos que propõem, sustentam ou expõem um posicionamento que questiona ou mobiliza um processo de emancipação. Naquelas propostas que, com toda a imprecisão que caracteriza o exercício e a experimentação, arriscam uma tomada de posição na esfera pública que se estrutura a partir de e, ao mesmo tempo, revela o ponto de vista de um sujeito consciente de si, do seu pertencimento e da sua implicação no momento presente e no incerto devir dessa mesma esfera.

Os vídeos BMX, de Alexandre da Cunha Face A Face B, de Rabih Mouré, a partir dos quais selecionei os artistas que reúno nesta curadoria de dossiês, são bons exemplos de exercícios assim, em que o espaço público e o momento histórico se mostram constituídos e (re)significados por meio da negociação de subjetividades

Carla Zaccagnini

2010

leia maisrecolher

Operação para as massas | Marcelo Rezende

Operação para as massas

A partir do movimento iniciado nos anos 1950 com o concretismo paulista, e a dissidência provocada pelo grupo neoconcreto carioca no final da mesma década, o pensamento construtivo tem se diluído no Brasil nos mais diferentes meios e formas, tendo se convertido em um momento definitivo para a história da arte brasileira no século 20, um ramo de pesquisa para a crítica e, em seus piores momentos, um maneirismo, um gênero, um estilo. Continua, de toda forma, incontornável.

Na base das ideias e intenções construtivas, parcialmente executadas durante os primeiros anos da Revolução Russa de 1917, esteve o reposicionamento do lugar da arte, ampliando sua atuação no campo político ao se inserir nos meios de produção industrial e procurar estabelecer uma forma de vanguarda popular, cultivada pelo contato com o consumode massa – tendo o design, a propaganda e a poesia como elementos estratégicos.

Nas duas primeiras décadas do período da industrialização brasileira, esse plano racional e neo-iluminista se dissolve (em contato com o contexto local) em outras propostas, ganha subjetividade e sensualidade, mas parte de seu projeto inicial – criar formas originais de organização e existência na sociedade por meio da arte, e de seu consumo –, apesar da presença na história da cultura e da contracultura nacional, permanece inacabado.

Hoje, no instante histórico em que o país passa por uma segunda onda de expansão econômica, na qual a tecnologia de distribuição de informação ocupa posição central para areconstrução das relações de poder e consumo, essa ansiedade do Projeto Construtivo Brasileiro, a disseminação em alta escala, encontra uma renovada possibilidade. “Operação para as massas” procura examinar de que maneira esse projeto se apresenta agora como proposta ativa para o artista e para a sociedade.

Marcelo Rezende

2010

leia maisrecolher

(A)pareço, logo existo | Denise Mota

(A)pareço, logo existo

Se o cinema se estabeleceu como universo em que a realidade é a ilusão(1), os artistas uruguaios escolhidos para este FF>>Dossier aplicam essa percepção - invertida - para retratar a sociedade atual: a ilusão é a realidade. Em chave “baudrillardiana”, dialogam com a sétima arte ao condicionar a compreensão do mundo à observação dos artifícios de ficção que marcam a contemporaneidade, “era da simulação”(2) caracterizada por uma avalanche de signos artificiais.

Para Jean Baudrillard (1929-2007), “o significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma ‘realidade’ subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica”(3). Em um avanço dessa compreensão e em um de seus arrazoados mais contundentes, considerou, em “A máscara da guerra” (artigo para o jornal Libération de 10 de março de 2003), que a Guerra do Iraque foi um “acontecimento fantoche”, “profilaxia em escala mundial” na qual, como Steven Spielberg apresenta no filme Minority Report- compara o francês -, o crime é pretensamente detido antes que germine. “A questão que se coloca irresistivelmente é: o crime previsto teria acontecido?” pergunta o filósofo. “O real está aqui no horizonte do virtual.”

Dessa proposição souberam tomar partido bem-sucedidos produtos cinematográficos.Matrix, série de dois filmes dos irmãos Wachowski, multiplicou exponencialmente o nome de Baudrillard no território midiático do qual o francês tanto se ocupou, embora tenha sido considerado por ele uma interpretação equivocada de suas idéias, porque polarizada entre real e virtual. Como tradutor cinematográfico de seus supostos, o filósofo francês preferia O show de Truman.

E nessa órbita, mas a partir de outra ótica, também gravitam os convidados deste FF>>Dossier. Dani Umpi, Paula Delgado, Martín Sastre e Juan Pedro Fabra Guemberena têm, como espinha dorsal de suas investigações artísticas, as instâncias de um mundo criado em laboratório - ou melhor, em ilhas de edição - , onde a percepção da realidade é mediada pela imagem.

Especialmente em relação ao contexto uruguaio, em que o vídeo como ferramenta artística goza de reconhecimento oficial recente (o Departamento de Vídeo do Museu Nacional de Artes Visuais do país surgiu em 1999), representam uma destacada geração de artistas, a trabalhar com mídias digitais desde o início de suas trajetórias. Todos são premiados, exibiram seus trabalhos em mostras locais e internacionais (Guemberena e Sastre participaram de várias bienais) e têm trabalhos marcadamente pessoais, apesar de também produzir com outros grupos.

Conciliando cinema, TV, vídeo e artes visuais, esses autores movem-se em um universo de receptores condicionados à vertigem tecnológica dos tempos que correm. Inventores de um variado e ininterrupto “faz-de-conta”, apontam a artificialidade, crueldade e/ou idiotia do discurso contemporâneo nas relações de poder cotidianas coletivas ou individuais – seja homem x mulher (Paula Delgado), Norte x Sul (Juan Pedro Fabra Guemberena), artemainstream x criação independente (Martín Sastre) ou baixa x alta cultura (Dani Umpi).

Diferentemente da compreensão de simulacro oferecida por Matrix, aqui a vida se reproduz sem distinção entre realidade objetiva e subjetiva, farsa, comédia, sátira ou drama, ficção ou documentário. Os quatro artistas identificam no simulacro uma ferramenta de poder e, ironicamente, adotam omodus operandi de uma sociedade saturada de imagens e excessivamente familiarizada com a representação em todas as suas formas.

Dani Umpi – personagem-autor-obra na qual se converteu o artista antes conhecido como Daniel Umpiérrez – transita entre o underground rioplatense, as quadras de futebol infantil e os salões de cabeleireiro de bairro, onde encontra apreciadores para os variados e, não raro, paradoxais frutos de sua criação. Cantor de playback, escritor-performer, poeta-curador, criador visto como criatura em tempo integral, multidisciplinar, fantástico e fantasioso, se propõe a oferecer um mundo particular, com muitos rastros do cotidiano e piscadelas debochadas às vicissitudes da vida, “sofisticada e vulgar”, como define.

Questões de gênero, pastiche e fetiche, dardos lançados com bom humor na direção do sexismo saem das mãos de Paula Delgado, a partir das várias personas que integram os comentários visuais que a artista tece sobre seu entorno. Uma deslumbrada wannabe, um antiquado casal de noivos que baila a valsa de casamento em um shopping, desconhecidos candidatos a símbolo sexual confrontados com o mesmo processo de confecção industrial da beleza feminina se mostram ridículos e sublimes, provocam simpatia e distanciamento, sorrisos e comiseração.

Como um prestidigitador, Martín Sastre joga purpurina nos olhos do observador. Tal qual Umpi, é produto e causa de suas criações, personagem que se mimetiza sob condições extraordinárias e que pode ser o redentor da América Latina em sua escalada rumo ao domínio mundial, o elemento de conexão para a secreta vida da princesa Diana após o acidente de carro em que o mundo a deu como morta ou a reencarnação subdesenvolvida de uma megaestrela como Robbie Williams.

A credencial de ilusionista também se esconde na cartola de Juan Pedro Fabra Guemberena, de onde podem sair soldados camuflados sob um céu de sonho ou pesadelo, livros atravessados por ambíguos tiros de fuzis (norte-americanos ou iraquianos?) e jovens sintonizados com a colorida cartilha da moda, mas que, na intimidade, acalentam obscuros projetos de existência.

Não é mais a arte que emula o mundo, mas o mundo que se rege pelas imagens e códigos reinantes na cultura de massas.

A vida e suas vicissitudes, misérias, maravilhas e mistérios são um desfile de pequenas, grandes e ininterruptas ficções diante de nossos olhos. O que não está na tela (grande ou pequena) não existe. Esses artistas simulam o simulacro e se concentram nos mecanismos que não apenas perpetuam como fortalecem o predomínio da imagem sobre qualquer outro objeto ou forma de contato com o mundo à nossa volta. Perucas, estereótipos, vestuários extravagantes, imitações de personalidades do pop internacional, uso abundante da linguagem hollywoodiana, confecção de materiais bélicos adequados para uso sensacionalista e, a reunir tudo isso, a supervalorização da aparência ocupam o centro da obra dos selecionados, criadores de sensações de realidade a partir do que se mostra.

(A)Pareço, logo existo.

“Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita todas as peripécias. O real nunca mais terá oportunidade de se produzir – tal é a função vital do modelo num sistema de morte, ou antes de ressurreição antecipada que não deixa já qualquer hipótese ao próprio acontecimento da morte. Hiper-real, doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar senão à recorrência orbital dos modelos e à geração simulada das diferenças”, descreve Baudrillard em Simulacros e simulação, espécie de manual de instruções que não passarão despercebidas por esses artistas.

Geração educada por uma frenética e universal babá eletrônica, tais criadores, nascidos nos anos 1970 e imersos no fazer artístico a partir dos 90, mantêm uma relação de rechaço e fascínio pela construção em série de ditames, verdades e mitos globais, envoltos em uma aura de glamour e retratados aqui através de referências que têm muitas vezes o cinema como matriz.

O primeiro ponto de inflexão na percepção do mundo e da obra de arte provocado sobretudo pela exibição de imagens em movimento – representação e reprodução do real em sua mais perfeita tradução –, a popularização e a sedução da cópia tiveram em Walter Benjamin o mais notável profeta, quando o cinema cavalgava sua escalada no horizonte das expressões artísticas. No clássico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1935), o alemão apontava a perda da “aura” do objeto artístico, transformado em possibilidade de fruição não mais para poucos, mas para a “massa”, no que derivaria em “uma atitude nova” com relação à arte.

Se, nos primórdios do cinema, o inusitado era fonte de espanto e, por conseqüência, de prazer(4) – já é clássica a imagem do trem chegando à estação Ciotat, há 110 anos, e apavorando a platéia da primeira exibição pública dos irmãos Lumière, que imaginou a locomotiva ultrapassando a tela e massacrando a todos –, hoje é o excesso de familiaridade com esse tipo de representação dos sucessos cotidianos (gráfica, estetizada e provocadora de excitação, sensação primordial para o homem moderno, segundo Nietzsche) o fator de estranhamento para o qual desejam chamar a atenção os artistas deste Dossier. As notas dissonantes do mundo contemporâneo já não se deixam ouvir através da diferença, mas do que é demasiadamente comum.

A jovem aspirante a famosa que viaja a Nova York e de lá manda registros do pretenso requinte alcançado; o cantor que mistura folclore e dance music como piada e que termina por transformar-se em sucesso radiofônico; um exercício de guerra convertido em paisagem romântica; o estrelato construído por truques de edição e frases-clichê que, por extremamente correntes, tendem a suspender a capacidade crítica do espectador são algumas das circunstâncias marcantes dos trabalhos dos artistas.

Blogs, celebridades instantâneas, lançamentos cinematográficos simultâneos e massivos, reality shows, webcams, CNN, YouTube e pirataria compõem o cotidiano desses autores, embebidos dos adventos da “sociedade da informação” – rápida, fragmentária, excessiva – e confortáveis na reprodução de seus códigos e na manipulação de suas regras. Na reflexão que propõem, a imagem é, por excelência, dispositivo de controle, de onde deriva a fama, a concessão para a violência e a instalação sub-reptícia da homogeneidade em escala global.

“Se o Real está desaparecendo, não é por causa de sua ausência – ao contrário, é porque existe realidade demais. Este excesso de realidade provoca o fim da realidade, da mesma forma que o excesso de informação põe um fim na comunicação”, grafa Baudrillard em A ilusão vital.(5)

Nos recorrentes exercícios de evidenciamento de “vidiotização”(6) da vida, os artistas utilizam significantes amplamente conhecidos para produzir novos significados. Pulverizam o entendimento do real como algo palpável, classificável ou inteligível, levando ao extremo a apresentação da imagem como único e último vestígio de uma ficção transformada em realidade e que, novamente ficcionalizada, se autodestrói.

(1)MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Grande Plano, 1997.
(2) “(...) A era da simulação inicia-se, pois, com uma liquidação de todos os referenciais – pior: com a sua ressurreição artificial nos sistemas de signos.” BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
(3) BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mitos-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1997.
(4)VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Boitempo, 2005.
(5)Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
(6)O vidiota, de Jerzy Kosinski, foi publicado originalmente em 1971 e levado ao cinema (pelo filme Muito além do jardim) com roteiro do autor em 1979.

Denise Mota

2007

leia maisrecolher

Identidade/alteridade | Paula Alzugaray

Identidade/alteridade: espelhos

Walter Benjamin dizia que uma história é tão manipulada por quem a conta como um vaso de cerâmica é moldado pela mão do ceramista. Foi Maurício Dias quem se referiu a essa passagem de O narrador, na primeira vez que o entrevistei, para ilustrar seu interesse pela colocação do autor em relação ao seu tema e sua descrença no modelo de documentário cuja preocupação é a invisibilidade da mão do autor. Maurício Dias & Walter Riedweg compartilham com o documentário o uso da câmera de vídeo, esse instrumento tão preso ao registro do real. Mas sua atuação, a cada trabalho, demonstra a impossibilidade da representação da “vida como ela é”. Não há entre eles nenhuma intenção de se colocar no mundo como meros observadores e o que emerge daí é uma estética muito menos preocupada em representar do que em interagir com o real.

Questões relativas à voz, à autoria, à colaboração ou à autoridade na construção do discurso sobre o outro são tão centrais à poética de Dias & Riedweg quanto para a antropologia e o documentário contemporâneos, que se vêem cada vez mais desafiados a se livrar do compromisso de “desvendar” identidades e “revelar” realidades. O alerta vem de realizadores e teóricos, como o antropólogo Jay Ruby, para quem o dilema da hora é a definição de sobre quem se fala, para quem se fala e como se fala. “A pretensão do documentário de ser um caminho certo para a verdade e a realidade de outras pessoas está minada, senão completamente destruída. O documentário foi reconhecido como a articulação de um ponto de vista, não uma janela para a realidade.” 

Nesse momento de quebra de espelho e de revisão de funções, o documentário contemporâneo conta com contribuições de artistas visuais que, desde meados da década de 1990, vêm se aproximando desse meio. Para refletir sobre a relação pendular entre artistas e documentaristas, reuni nesta curadoria do FF>>Dossier as poéticas de Dias & Riedweg, Alice Miceli, Rosângela Rennó e Luciano Mariussi. Alguns trabalham com apropriação de arquivos e recontextualização de documentos. Outros documentam processos artísticos de interação com pessoas, grupos, situações. Nem todos fazem documentários, mas interrogam constantemente as relações entre a realidade e seu registro. A partir desse pressuposto comum, escolho como elemento agregador da discussão os trabalhos que se utilizam do espelho, sempre de forma paradoxal, seja para questionar a concepção de imagem como duplicação do mundo, ou para refletir os próprios mecanismos de representação do mundo. 

Historicamente, a relação entre arte e documentário beirou o antagonismo, nos moldes da dicotomia arte/ciência. Embora associado ao discurso objetivo e descritivo da ciência, o documentário já tem assimiladas suas qualidades de interpretação, subjetividade, arbitrariedade e parcialidade. Aqui, vale destacar as experiências fundantes do “documentário compartilhado” de Jean Rouch e Edgar Morin, em Crônicas de um verão, na França; e o projeto de antidocumentário de Arthur Omar, no Brasil. Ocorre que, quando o cinema documental chega à sua “crise da representação”, a arte contemporânea já se encontra num estágio conceitual, com os paradigmas modernos de auto-referencialidade completamente detonados. Quando começam a atuar em territórios exteriores à arte, migrando para os campos da antropologia, da etnografia, da sociologia, da política, das terapias corporais e outras esferas do “mundo real”, artistas deixam de ser antagônicos a documentaristas. Cabe, então, observar aqui suas contribuições para a revisão do documentário e de sua aceitação como prática cada vez mais híbrida, permeável e distante do paradigma de reprodução da realidade.

Assim como a fotografia brasileira contemporânea esgotou sua função de captar a alma e desvendar a identidade do brasileiro, o cinema documental, em crise, ou pós-crise, também procura se afastar dos tipos brasileiros paradigmáticos da sociologia ¬– o camponês, o favelado, o índio, o seringueiro, o operário ¬–, mirando uma ampliação de seu espectro de identidades. O vídeo Espelho diário (2001), em que a artista Rosângela Rennó interpreta os papéis de dezenas de mulheres de nome Rosângela, introduz ao rol de arquétipos identitários brasileiros tipos correntes e nada óbvios, agregando frescor e perplexidade a um campo minado por previsibilidades. Entre elas, a policial loura burra, a pombagira, a presa, a retirante, a assassinada, a mãe solteira favelada, a mãe de 33 filhos, a mulher bem-amada, a noiva, a menina abusada, a dona de casa classe média, a perua e ¬– uma das categorias mais exploradas pelos meios de comunicação – a vítima de morte violenta. 

Por outro lado, Espelho diário faz parte de um grupo de trabalhos de Rosângela Rennó que exploram as narrativas. De volta a O narrador, noto, na vasta coleção de textos dos trabalhos da série Arquivo universal, uma tensão permanente entre o que Benjamin discriminou como “narrativo” e como “informativo”. Mesmo que extraídos de notícias de jornal, os textos interpretados ou reproduzidos por Rennó ganham uma aura levemente fantasiosa, que os aproxima do texto “narrativo” descrito por Benjamin: “O leitor é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”. 

O trabalho faz referência ao tablóide britânico Daily Mirror, mas, ao operar um deslocamento do texto de sua esfera original de notícia jornalística, Rosângela incide contra o espelho. “Por outro lado, não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós?”, pergunta uma das Rosângelas, em declarado confronto ao espelho que separa as dimensões do pessoal e do social, do íntimo e do público, do eu e do outro. 

À luz das modalidades de representação documental propostas pelo teórico do documentário Bill Nichols, a obra de Dias & Riedweg pode ser lida como auto-reflexiva. Isto quer dizer que, em vez de refletir o outro, reflete as políticas de representação do outro. Nesse sentido, talvez o que Dias & Riedweg façam não esteja tão distante das proposições do documentarista Eduardo Coutinho, que busca a cada filme um novo dispositivo de relação com o entrevistado. Daí meu interesse em convidar para o ensaio crítico sobre a obra de Dias & Riedweg a documentarista e pesquisadora Consuelo Lins, autora de um livro referencial sobre a obra de Coutinho. 

A auto-reflexividade é total no corpo da obra de Dias & Riedweg, mas especialmente importante em Voracidade máxima (2004). “Trabalhamos com o espelho para delatar não só os paradoxos, mas a complexidade das coisas”, me diz Maurício Dias. Na instalação – uma sala de espelhos, com uma cama ao centro diante de uma tela onde é projetado um vídeo –, a função do espelho é fragmentar e multiplicar as possibilidades de visão do tema abordado. Também entre entrevistador/entrevistado encena-se uma relação espectral: para conversar sobre sexualidade, economia, prostituição e imigração, ambos compartilham sinais identitários, usando a mesma roupa e o mesmo rosto (o entrevistado usa máscara que reproduz as feições do rosto do artista). 

A presença física de Maurício e de Walter dentro da videoinstalação está em consonância com a argumentação de Jay Ruby sobre o fim da ingenuidade da crença em verdades imutáveis inerentes ao mundo. “As pessoas hoje querem saber quem fez e que ingredientes foram usados, antes de comprar qualquer coisa – aspirinas, carros, notícias ou educação. Não acreditamos mais que os produtores sejam pessoas bem-intencionadas.” Sobre a relatividade das verdades, Dias & Riedweg preparam para a Documenta 12 um trabalho em que A história verdadeira, relato de Hans Staden sobre o Brasil e seus hábitos canibais, é reinterpretado à luz do movimento funk carioca. 

A passividade do espectador diante da manipulação dos meios de comunicação é justamente a preocupação que levou Luciano Mariussi a produzir o videodocumentário Não entendo (1999), no qual o artista faz questão de demarcar sua visão particular e parcial dos fatos. O vídeo faz parte de uma série de trabalhos que invocam o embate entre a arte contemporânea, o público e o espaço expositivo. Enquanto Estética (2002) apresenta formulações teóricas do público a respeito do que compreendem em uma mostra de arte contemporânea, Não entendo é uma representação do lapso que separa arte e público. Como estratégia, tudo foi concebido de forma a acentuar o constrangimento: nas gravações, foram feitas perguntas sobre arte em línguas estrangeiras, dirigidas a passantes desavisados nas ruas. Na edição, as perguntas foram subtraídas, restando o monólogo de um público constrangido. O trabalho foi concebido como um site specific, para ser exposto em museus e instituições ao lado de outras obras de arte. Dessa forma, Mariussi aponta sua câmera para os textos e legendas, que funcionam como pontes na relação arte x espectador. Entre gritando: Eu sei o que é arte contemporânea (e ganhe um desconto de R$ 2,00 reais), obra propositiva apresentada na 29ª edição do Panorama da Arte Brasileira, do MAM-SP, atua no mesmo registro dos vídeos.

Finalmente, a primeira artista contemplada pela curadoriaIdentidade/Alteridade, Alice Miceli, dilacera o espelho em Ínterim/auto-retrato(2003). No vídeo, a imagem de Alice é desdobrada em fragmentos, que perdem progressivamente a identidade original até alcançar a imagem de outra pessoa idêntica, sua irmã gêmea. O vídeo apresenta uma inquietação, presente em outros trabalhos de Alice Miceli, por localizar os desdobramentos do tempo contido em uma só imagem. Algo da mesma ordem se passa em88 de 14.000 (2004), que projeta em uma cortina de areia os retratos de homens, mulheres e crianças executados em uma prisão de extermínio no Camboja. A passagem inexorável do tempo, contida em cada grão de areia em movimento, devolve pulsação a cada um dos retratos. É como se vida e realidade fossem restituídas ao fato documentado.

As imagens do Camboja me fazem voltar a Walter Benjamin, que vislumbrou dois grupos fundamentais de contadores de histórias. Reconheço em Alice Miceli a figura arcaica do marinheiro comerciante, que trazia relatos de terras distantes, imprimindo às histórias sempre as marcas do caminho e agregando a elas novos sentidos. Alice destitui a imagem de seu sentido documental, atribuindo-lhe uma nova temporalidade e amplitude de sentidos que não existiam antes na informação. Nesse sentido, voltamos ao primeiro capítulo da história do documentário, os filmes de viagem. Quando Alice Miceli inventa um dispositivo para fazer imagens do invisível em sua viagem à zona de exclusão de Chernobyl, vejo-a como uma atualização do cineasta explorador. Mas isso já é uma outra história. 

Paula Alzugaray

2007

leia maisrecolher

Outros espaços | Eduardo de Jesus

Outros Espaços

Em 1973, Nam June Paik anunciava em seu Global Groove: “Este é um lampejo da videopaisagem do futuro, quando você será capaz de sintonizar qualquer emissora de TV na Terra e os guias de TV serão tão grossos quanto a lista telefônica de Manhattan.”* Apesar da previsão de Paik não ter se concretizado de forma tão precisa e radical como o vídeo sugere, já que não temos canais dedicados à experimentação ou mesmo à diversidade imagética proposta pelo artista em seu vídeo, vivemos cercados por imagens. Uma espécie de imagescape (Burnett, 2004), que mescla as intensidades da realidade direta e seus modos de apresentação e representação pelas mídias, numa tensão entre proximidade e distância como, por exemplo, no caso da televisão e do lugar que ela ocupa nas casas de todoo mundo.

A questão que nos colocamos para construir esta curadoria passa inevitavelmente por essa relação entre os espaços e a imagem eletrônica. Longe de criar um cenário apocalíptico (Lyotard, Baudrillard), acreditamos que seja mais importante traçar as linhas de uma paisagem que se desdobra tanto para mostrar a potência do vídeo em revelar o espaço que experimentamos na contemporaneidade (híbrido, fluido, heterogêneo, descontínuo) quanto para pensar como o vídeo ocupa o espaço na contemporaneidade. Ou seja, podemos perceber duas vertentes que se entrelaçam: de um lado, o vídeo como possibilidade de revelar o espaço; de outro, vemos que o próprio espaço anda repleto de imagens, de telas (Virilio). Retomando os espaços domésticos, o espaço da casa habitada e de certa forma organizada em torno da TV como forma de distração, janela para o mundo exterior ou espelho** para si própria, já provocou muitas e distintas reflexões. Dan Graham, Vito Acconci, Margareth Morse, Run Burnett, entre outros, já estiveram diante das questões suscitadas pela presença das imagens nos espaços contemporâneos.

Entre estas duas vertentes, apesar da sedução que a questão nos suscita, vamos aqui dar conta de apenas uma: aquela que reflete sobre como o vídeo retrata/revela o espaço. 

Acreditamos que a produção audiovisual contemporânea tem se encaminhado para uma reflexão sobre o espaço de modo a explicitar as tensões que experimentamos diariamente nos diversos espaços que transitamos. De um lado sabemos que as tecnologias de comunicação à distância nos fazem reapropriar o espaço de um modo diferenciado. As fronteiras entre o público e o privado estão em movimento, assim como nós com nossos celulares, palm-tops e outros instrumentos móveis de comunicação e acesso à informação. Por outro lado, além da tecnologia, os conflitos contemporâneos que vivemos nos obrigam a redefinir identidades, etnias e sobretudo lugares, territórios, espaços. Como a produção audiovisual consegue lidar com essa situação? O que vemos é uma diversidade de estratégias que ampliam os sentidos que o espaço pode alcançar. O conceito de heterotopia, definido por Foucault, em seu texto “Outros espaços” pode nos ajudar na compreensão destas relações.

Segundo Foucault (1984, 411), “a época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado e do disperso”. Tendo em vista essa situação que experimentamos, Foucault aponta três estágios fundamentais dos modos de perceber o espaço ao longo da história: primeiro teríamos, na idade medieval, a divisão entre os espaços reais e os celestes, que acabam criando um espaço de localização. Posteriormente, com Galileu, o espaço passa a ser de extensão, ou seja, a infinitude em contraposição à visão medieval. O homem perdendo o seu lugar central no espaço infinito que “não tem nem centro nem margens”. Atualmente, segundo Foucault, vivemos o posicionamento. O que caracteriza um espaço “definido pelas relações de vizinhança entre pontos e elementos; formalmente, podem-se descrevê-las como séries, organogramas, grades” (FOUCAULT, 1984, 415).

Este espaço que se oferece a nós como “relações de posicionamento”, segundo Foucault, pode ser colocado em torno de duas idéias de espaço: as utopias e as heterotopias. As utopias são os “espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais” (FOUCAULT, 1984, 415). Por outro lado, temos as heterotopias, que são posicionamentos reais. 
 

Há, (...), e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias (FOUCAULT, 1984, 416).


A análise destas heterotopias, tanto as de crise quanto as de desvio, nos permite compreender as relações de posicionamento de indivíduos e grupos nestes diferentes espaços de “contestação simultânea entre o mítico e o real”. Apesar de Foucault citar poucos exemplos, bastante metafóricos, como o espelho (utopia e heterotopia ao mesmo tempo), o cemitério, o asilo e o barco, é possível, a partir destas aberturas, tentar explorar as relações de posicionamento geradas pelas imagens e seus dispositivos no espaço. 

Assim, acreditamos que alguns trabalhos da produção audiovisual mais recente viabilizam essa situação do espaço como uma heterotopia. No caso dos vídeos, trata-se de um modo de proceder com as imagens para que elas consigam refletir a multiplicidade das relações de posicionamento que experimentamos atualmente, nos diversos espaços pelos quais transitamos. Cada artista, a seu modo, soube construir suas imagens do espaço em “uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos” (FOUCAULT, 1984, 415).

Não é por acaso que iniciamos a curadoria Outros espaços, do FF>>Dossier, com Landscape Theory (2005), de Roberto Bellini. É de causar espanto o espaço que Bellini consegue revelar com seu vídeo. As imagens clichês revelam como o espaço vem sendo estriado pelo capital em uma complexa gama de relações de poder, que transformam o simples ato de gravar imagens em uma ameaça. A fricção que existe no diálogo entre quem faz as imagens e quem comenta o ato não se reflete nas singelas imagens de pássaros voando ao pôr-do-sol. Este contexto transforma a imagem, que passa a traduzir e revelar os modos de exercício do poder. O espaço vazio suporta ao mesmo tempo todos os lugares de controle e nos coloca frente a frente com a idéia de justaposição. 

Sem confrontar nenhum espaço como imagem, Bellini nos revela o grau das heterotopias que experimentamos, espaços inventados, justapostos com espaços reais. Imagem-dispositivo que explicita as redes de tensão e as linhas de força que caracterizam a relação entre o lugar da imagem (“Tinha um cara filmando o Dillard's aqui outro dia com uma câmera (...) e a polícia de Austin o prendeu”, como nos mostra um dos diálogos do vídeo) e a imagem do lugar (o céu de uma cidade nos Estados Unidos) como propriedade, estriamento máximo.

Em Uyuni (2005), de Andrés Denegri, a situação se repete. O espaço árido revelado em potentes imagens processadas parece oscilar entre a segurança e a insegurança. Visão estrangeira que experimenta o novo. O espaço vazio de Uyuni faz reverberar a situação do casal que parece não fazer parte daquilo, não se incluir naquela situação. Ao contrário de dotar as imagens com novos sentidos por meio do áudio, como faz Bellini, Denegri mostra que as imagens refletem exatamente a situação do casal. O espaço não mais como justaposição, mas como “sistema de criar aberturas e fechamentos que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis” (FOUCAULT, 1984, 421). A dimensão da cidade de Uyuni revelada por Denegri diz respeito à situação do casal. A imagem revela não o espaço tal qual ele é, e sim como uma realidade construída por meio de uma situação.

Com Alugo-me (2004), de Fernanda Goulart, o espaço é subjetivo. Construído em sucessivas visitas e gravações em casas vazias, disponíveis para aluguel, Goulart cria um espaço entre o privado e o público. De um lado as imagens da casa vazia, pronta para ser ocupada, e de outro o áudio de anúncios amorosos veiculados pelas rádios populares. Solidão? Sensação de vazio? Os espaços das casas mostrados por Goulart nos aprisionam nessa situação em que de um lado está a casa e de outro, a rua. O que a artista parece fazer com seu vídeo é construir uma interseção entre estes dois espaços, um elo de ligação pelo arranjo entre imagem e som. A rua parece invadir o espaço vazio da casa para ocupá-la com suas esperanças de amor.

Este mesmo espaço público é o foco de Vue Panoramique (2005), de Bouchra Khalili, mas com outros contornos. Ao contrário de trazê-lo para o universo doméstico como Goulart, Khalili trata de movimento, de contemplação. Olhar e comentar o espaço público. Com isso explicita, a seu modo, com muita delicadeza, os nossos nomadismos, as passagens entre os espaços, o ir-e-vir dos barcos. Aqui o espaço é paisagem que se deixa contemplar por um olhar intenso preocupado em ver além, em descobrir qual a função do movimento. Paisagem e memória parecem se encontrar neste nomadismo do olhar sobre a paisagem.

Claudia Aravena retoma o tema da memória associado aos territórios e também aos nomadismos que, de alguma forma, acabam por refletir sobre as identidades. Podemos perceber este tema nos encontros entre memórias diferenciadas em Berlin: been there / to be here (2000) e também nas aproximações entre Santiago e Berlim em Lugar Común (2001). Já em Out of Place (2005), Aravena parece ir mais fundo nestas questões e discute, de forma bastante pessoal, a situação de famílias palestinas exiladas no Chile. A situação do espaço como recriação da memória, projeto memorialístico quase-proustiano***, solto num tempo de procura, de busca. Assim é o trabalho de Aravena. O espaço aqui serve para buscar-se o tempo e para revelar/revirar a memória.

Em Background to a Seduction (2004), de Gregg Smith, o espaço é pura recriação lúdica. O casal que divide uma garrafa de vinho muda de situações ao sabor dos suaves movimentos de câmera que acabam revelando onde aquele cenário está, em qual contexto. Smith mostra que o espaço é antes de tudo movimento e recriação. Heterotopia que coloca próximos lugares distintos. Assim, o universo vivido pelo casal, com toda a delicadeza e sutileza de pequenas flores em pequenos movimentos ao fundo, pode ser qualquer lugar, aquela atmosfera do encontro cria sempre um espaço, que se incrusta em outros criando uma justaposição de diversos espaços distintos. 

Longe de esgotar as relações entre imagem e espaço, esta curadoria é um ponto de convergência de reflexões, e tem por objetivo colocar a discussão, mesmo que inicial, sobre a questão, no sentido de abrir e provocar novos debates. 


* Tradução livre de: This is a glimpse of a video landscape of tomorrow when you will be able to switch on any TV station on the earth and TV guides will be as fat as the Manhattan telephone book.
** Conferir: GRAHAM, Dan, “Video in Relation to Architecture” IN: HALL, Doug e JO FIFER, Sally (eds.), Illuminating Video: An Essential Guide to Video Art, New Jersey, Aperture Foundation, 1990. GRAHAM, Dan, “Three Projects for Architecture and Video / Notes (1977)” IN: Theories and Documents of Contemporary Art, STILES, Kristine e SELZ, Peter (org.), University of California Press, 1996.
*** É inevitável não lembrar de Proust acordando no meio da noite em busca de um lugar: “Na verdade, quando despertava assim, com o espírito se debatendo em vão para tentar descobrir onde estava, tudo girava à minha volta no escuro, as coisas, os lugares, os anos.”

Eduardo de Jesus

2006

leia maisrecolher

Artistas Premiados 15º Festival | Solange Farkas

leia maisrecolher