Biografia comentada Eduardo de Jesus, 02/2007
A trajetória artística de Bouchra Khalili se desdobra para além da realização de vídeos. Nascida em Casablanca (1975, Marrocos), a artista vive em Paris, onde estudou cinema na Sorbonne Nouvelle, mesma escola em que, desde 2000, leciona estética e história do cinema. Graduada ainda em artes, pela École Nationale Supérieure d'Arts Paris-Cergy, é co-programadora da Cinemateca de Tânger (Marrocos), espaço aberto em 2006 e que tem como missão iluminar a cultura cinematográfica do país, tornar-se um ponto de intercâmbio internacional e um centro de formação para profissionais e estudantes de cinema.
O cinema é a grande referência da artista, que produz seus primeiros trabalhos - InSide/OutSide, L'Antichambre, À rebours e Appuntamento- no período de 2000 a 2002, o mesmo em que realiza uma residência no Cité des Arts, em Paris. A partir de 2003, seus vídeos e instalações chamam atenção em festivais e mostras dedicados ao audiovisual no mundo, conquistando prêmios e integrando-se a coleções importantes, como a do OVNI (CCCB) e da Mediateca da CaixaForum, em Barcelona, e a do The Film Society of Lincoln Center, em Nova York.
Aspectos da cultura mediterrânea constituem uma espécie de território imaginário nos trabalhos de Bouchra Khalili. De forte caráter experimental, eles problematizam os formatos tradicionais do audiovisual ao absorver tanto procedimentos do documentário, da ficção e da videoarte quanto produtivas contaminações vindas do campo das artes plásticas. Suas construções imagéticas tornam-se reveladoras das experiências de deslocamento dos nomadismos contemporâneos, com todas as suas implicações na construção das identidades - ao mesmo tempo em que deslizam com delicadeza entre os territórios preestabelecidos e algumas vezes limitadores dos formatos.
A construção formal de suas obras prima pelo rigor nos cortes, pelas durações estendidas dos planos e pela quase ausência de tratamento das imagens. A inventividade aparece nos modos de relacionar som e imagem e no tratamento subjetivo-reflexivo que é dado aos temas, com textos ao mesmo tempo poéticos e esclarecedores das situações contemporâneas.
Um exemplo de seu modo de tratar essas situações é a maneira como respondeu ao convite do curador, escritor e poeta tunisiano Abdelwahab Meddeb para participar da exposição O Ocidente visto pelo Oriente, realizada em 2005 no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Na instalação La Soltera/La Novia, uma mulher comanda um processo seletivo entre candidatos a ter uma ligação com ela. Ao tratar “do tabu do amor estrangeiro no coração de uma mulher islâmica”, a obra reinventava, para nossos dias, a síndrome de Zoraida, a mulher árabe que se apaixona por um cristão em história narrada por Cervantes em El hombre de la mancha.
O mesmo modo de abordar questões complexas está presente em trabalhos que tratam dos temas ligados ao território e aos nomadismos, como Napoli Centrale (2002), exibido no 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, Vue Panoramique (2005), que esteve na 15ª edição do Festival, e o recente Vue Aérienne (2006). Nessas três obras, as questões do território criam uma espécie de paisagem, que se caracteriza pelo foco nas relações subjetivas e nos movimentos de territorialização-desterritorialização típicos de nosso tempo. Através das imagens de Bouchra, vemos uma sutil revelação das situações e tensões que o território, as fronteiras e o espaço urbano provocam nas nossas subjetividades.
Talvez por isso seu novo trabalho, Straight Stories, ainda em desenvolvimento, mostre justamente as visões que as pessoas têm umas das outras quando estão à beira do estreito de Gibraltar, que separa o Marrocos da Espanha. Novamente, Bouchra lança mão de uma edição que dissocia som e imagem: os depoimentos são mostrados em off, enquanto as imagens enfocam a paisagem, as passagens, o território. Elaborado, o recurso acaba por nos ajudar a perceber em que medida aquele espaço estreito e específico é capaz de condicionar visões tão radicalmente diferentes e estrangeiras do mundo e do Outro.