Entrevista Denise Mota, 2007
Desde Candy e de Ayer, em que uma garota de cadeira de rodas canta Luis Miguel, a estética videoclipe-karaokê marca sua obra. Por que esse formato lhe interessa? Quais elementos oferece para a proposta que deseja construir?
O videoclipe surgia naturalmente no momento de abordar certos temas. Fui criança nos anos 1980, e o videoclipe acompanhou meu crescimento. Um mundo cheio de clichês até o cansaço, que tive que pensar e repensar para “superar”. Na maioria dos casos, funcionam como o exemplo perfeito dos estereótipos de gênero. Idéias claras e simples com bom ritmo e em pouco tempo. Uma boa fórmula para se apropriar. O que fiz nesses trabalhos foi repetir a fórmula trocando algumas fichas de lugar. No lugar da clássica “mulher de videoclipe”, a protagonista era uma jovem de cadeira de rodas, ou uma loira que não era loira, mas que usava uma peruca que caía mal. Não deveriam estar aí, mas estavam. Esse “não deveriam estar aí” evidencia os modelos impostos que incorporamos.
A condição feminina é outro elemento notável em seu trabalho. Com Candy, o alvo parecia ser a construção de uma verdade a partir das aparências. Ayer cria uma fantasia dentro da fantasia: usa a fórmula do clipe com uma protagonista, um lugar e uma situação que nunca estariam em uma produção pop. Evidenciar o que os estereótipos têm não apenas de agressivos e discriminadores, mas de vazios e grotescos é o objetivo desses trabalhos?
Gerar consciência sobre os estereótipos sempre me interessou. A idéia é parar por um momento e dizer: “Por que estão me dando apenas essa opção, se posso ter outras?” Na verdade, existem tantas opções quantas formos capazes de imaginar, o problema é que os meios de comunicação e a cultura em geral muitas vezes cerceiam essa capacidade, aprisionando-nos a uma só maneira de ver as coisas. Na maioria dos casos, essa maneira “correta” implica desigualdades. Quando nos permitimos sair desses esquemas, vemos que há outras possibilidades. Mas geralmente vivemos afundados neles, sem nos dar conta de que é possível sair.
Feliz aunque no libre aprofunda a questão, levando-a ao entorno doméstico. Por que os papéis sociais da mulher a atraem e quais aspectos dessa condição você quer ressaltar?
Não são os papéis da mulher que me atraem, mas os papéis das mulheres e dos homens. Acho que os papéis de gênero estereotipados prejudicam a mulheres e homens de igual modo, e me surpreende que isso não seja percebido assim. É como dizer que a discriminação racial é um problema das pessoas de raça negra, quando é um problema de todos. A menos que ocupar o papel de opressor seja visto como algo positivo. Enfim, Feliz aunque no libre é uma obra que construí com base em desenhos dos anos 1970 que eram publicados em um jornal local quando eu era pequena. Os encantadores desenhos para crianças diziam coisas como: “Amar é… lavar os pratos sozinha”, “Amar é… deixá-la manter conversas bobas pelo telefone”, “Amar é… deixá-lo ler a revista Playboy”, “Amar é… não deixá-la sair de microssaia”, “Amar é… limpar a banheira sem protestar depois que ele tomou banho”, “Amar é… alçar a barba depreciativamente quando você escuta falar do movimento de liberação da mulher”, “Amar é… sentir-se feliz, ainda que não livre”. Um conceito do amor, das mulheres e dos homens alarmante. Na obra, tento exorcizar essa informação, que entrou em minha mente quando eu ainda era pequena demais para raciocinar por conta própria.
Karina, trabalho seu com Julia Castagno, traz uma mudança de olhar, ainda que trate de mais uma situação feminina. A obra não apenas espelha o cotidiano, mas propõe uma solução simbólica ao conflito que apresenta. Como surgiu a idéia de fazer um vídeo sobre assédio verbal?
Julia Castagno e eu somos, além de colegas de trabalho e muito amigas, pessoas com muitos interesses comuns. O assédio verbal à mulher nas vias públicas é algo cotidiano em países como o nosso e é um tema que não podemos deixar de analisar. Não compreendíamos a aceitação de algo tão violento quanto a “cantada” de rua, mas queríamos saber como outras mulheres conviviam com isso. Assim, saímos às ruas para fazer entrevistas. O que encontramos foi que muitas das respostas estavam de acordo com nossa idéia: a “cantada” se transforma, na maioria das vezes, em uma fonte de insegurança constante para a mulher. Também fomos à delegacia da mulher para ver se a agressão verbal na via pública era algo que se podia denunciar, mas ninguém soube responder. Foi fazendo essa investigação que encontramos Karina. A solução simbólica que se apresenta no vídeo materializa nossa fantasia. Muitas vezes gostaríamos de agir frente a esses agressores de maneira radical. Na nossa vida, ainda que não batamos nesses homens, paramos e lhes respondemos à queima-roupa, lhes dizemos tantas coisas que eles ficam sem saber o que fazer. Talvez da próxima vez em que queiram dizer algo, pensem duas vezes.
Karina não tem uma atividade comumente associada ao universo feminino nem se vincula aos tipos que vinham sendo explorados por você: não é cantora, não aspira a ser popstar, não é romântica ou ingênua. É boxeadora. O trabalho foi sendo moldado pelo personagem?
O personagem apareceu sozinho. Depois de uma noite inteira de entrevistas, encontramos essa jovem de dezoito anos que nos dizia que os homens não costumavam se meter com ela, e que de todas as maneiras ela não sentia medo. Era boxeadora e isso lhe dava segurança. Imediatamente soubemos que ela seria a protagonista de nosso vídeo. Nosso trabalho é uma ficção baseada nas experiências que fomos coletando. Percebemos até que ponto a mulher não está preparada para se defender, e muito menos para atacar, e de que forma isso a coloca desde o princípio em uma posição de maior vulnerabilidade.
Karina retrata diversas situações e cantadas grosseiras. Como foi o trabalho de preparação e de “investigação de campo” para esse aspecto do vídeo?
Em primeiro lugar entrevistamos mulheres nas ruas de Montevidéu. Depois fizemos uma lista muito grande com as frases mais comuns que se escutam nas ruas. Daí fizemos uma seleção. Toda a equipe que trabalhou conosco (produção, fotografia, edição, maquiagem, figurino, casting), todas mulheres, havia ouvido ao menos uma vez uma frase como as que aparecem no vídeo. Meu namorado, no entanto, não podia acreditar que nos dissessem essas coisas. Em muitos casos, vivem ausentes de nossa realidade cotidiana. Não têm idéia do quão diferente é para um homem e para uma mulher caminhar pelas ruas. Por isso não quisemos suavizar a grosseria, para que se perceba tal qual ela é na realidade.
A série Cómo sos tan lindo traz uma nova mudança: refletir os mecanismos de construção da beleza feminina trasladando esses códigos para o universo masculino. A partir de quais percepções, reflexões e observações se construíram os conceitos desse trabalho?
Na verdade, Cómo sos tan lindo não traslada códigos da beleza feminina ao universo masculino. O que faz é colocar o homem diante da câmara, invertendo a ordem clássica (sempre a mulher é a observada). O ponto de partida da obra é um anúncio em jornais, em que se pedem “homens atraentes para fotos”. A partir daí, o conteúdo quem oferece são os homens que se apresentam: a definição do que é atraente, os gestos, as poses, a autopercepção a respeito da beleza. Se você percebe isso como um código do universo feminino, provavelmente é porque o único referencial da beleza que estamos acostumados a ver é o feminino. Quando vemos um homem posando em uma atitude sedutora, isso nos faz pensar em uma mulher, porque é quem costumamos ver nesse lugar. Isso diz muito. A imagem do “homem sedutor” que temos no imaginário é uma imagem construída pelos olhos de outro homem. O modo que uma mulher tem de olhar o corpo de um homem não é algo que estejamos acostumados a ver. Senti que a imagem do homem como objeto de beleza para a mulher era uma grande ausência e que era necessário buscá-la. Quando vejo as pessoas assistindo aos vídeos, me dou conta de que esse trabalho move fibras muito íntimas, pelo tipo de reação que provoca.
Você tem um projeto de investigação, realizado através de uma bolsa do governo uruguaio, sobre a questão de gênero nas artes. Como está estruturado esse trabalho e em quais aspectos você vai se concentrar especificamente?
Trata-se de um apoio do Ministério de Educação e Cultura, por meio de seus Fundos Concursáveis para participar de um encontro em Viena, organizado pelo Museum Quartier, com artistas contemporâneos de diversos países que trabalham sobre aspectos de gênero. Cada um desenvolve um projeto, e paralelamente se realizam conferências e mesas-redondas. Fui convidada para desenvolver Cómo sos tan lindo na cidade de Viena. Cómo sos tan lindo foi concebido como um projeto itinerante porque tenta ver como a construção da beleza varia em diferentes contextos culturais. Já foi realizado em Montevidéu e em Buenos Aires e, em breve, em Santiago e Valparaíso.
O pop, a linguagem cinematográfica-televisiva-de moda, a ironia e a crítica se fazem presentes ao longo de toda a sua obra. Manipular as ferramentas e os códigos com que os públicos contemporâneos estão acostumados é a melhor maneira de chamar sua atenção para as disfunções do discurso cultural de nossos dias?
É que são justamente esses códigos e essas ferramentas que constroem a contemporaneidade. É difícil refletir sobre a realidade que nos rodeia sem tê-los em conta, sem fazer referência a eles.
O simulacro é o filtro que se oferece para refletir um mundo muito parecido ao nosso, mas com alternativas menos recorrentes. Teatralizar a realidade, reproduzir as reproduções com que estamos habituados (por Hollywood, pela publicidade, pela televisão etc.), mas introduzindo aí notas dissonantes: é esse o fio condutor de sua obra?
Gosto da expressão “teatralizar a realidade”. Sim, há algo disso. Tem a ver com pensar a arte como modo de vida. Com viver a vida como um “work in process”. Procuro gerar experiências para multiplicar as possibilidades que me são dadas. São situações que não aconteceriam na realidade, mas que terminam sendo reais através da arte. E, a partir dessas situações, surge a análise, a reflexão. Sempre tento incluir a ação em minhas obras. Acho que é uma pena deixar que as pessoas contemplem a obra de um lugar distante. É importante que elas se envolvam. Que a obra se transforme na sua realidade naquele momento. Por exemplo, em Cómo sos tan lindo, me parece fundamental incluir na mostra uma instância com os homens que participaram. É um momento muito rico.
Em que outros lugares você gostaria de realizar Cómo sos tan lindo e por quê?
Adoraria realizá-lo na Índia e na China, ou no Japão, países-chave da cultura oriental. Entendo que nos países ocidentais se repitam padrões estéticos, gestos, formas de posar, e me pergunto até onde chega a globalização nesse sentido. Nas duas cidades em que realizei os vídeos até agora, mencionou-se Brad Pitt como exemplo de beleza. Acho isso engraçado. Acontecerá o mesmo na China? Seria impactante. Tenho previsto realizar a série no México e no Paraguai, dois países culturalmente muito fortes e machistas. O que me interessa desse trabalho é que são os próprios homens que jogam por terra as estruturas machistas com seu discurso. Não é necessário acrescentar nada.
Em 2003, você realizou com Julia Castagno um projeto de arte pública, Ciudad ideal, em que obras de arte ocupavam o lugar de painéis publicitários. Você disse na época que o objetivo era refletir sobre o uso que se faz do espaço público para criar “necessidades inexistentes”. Essa inquietação continua presente em seu trabalho?
Talvez não em meu trabalho atual, mas em mim, sim. O objetivo central dessa obra era tomarmos consciência, como cidadãs, além de como artistas, de que também temos direito de gerar o imaginário no espaço público, em vez de apenas consumi-lo. A cidade havia se coberto, nos últimos anos, de suportes luminosos para publicidades que só transmitem valores com fins comerciais. Parecia-nos um desperdício não aproveitar esses espaços, tão visíveis e bem iluminados, para outros fins. A obra foi conseguir colocar um novo conteúdo nesses suportes.
Você trabalha com produção publicitária. Ou seja, tem uma visão “interna” do poder, técnicas, linguagens e vícios da publicidade para gerar “necessidades inexistentes”. Como essa atividade alimenta suas criações de arte?
De duas maneiras. Por um lado, funciona como um treinamento. O relacionamento com uma equipe, a administração dos tempos, a sistematização do trabalho. Por outro lado, mantém sempre viva minha necessidade de criar imagens que equilibrem um pouco esses conteúdos publicitários. Dedico-me especificamente à produção de arte, não estou envolvida com as idéias, mas não posso deixar de me questionar sobre o que no fundo está sendo dito para vender um produto. É bastante terrível.
Martín Sastre é seu primo e com ele e outros artistas, como Dani Umpi, vocês integraram o coletivo Movimiento Sexy. O que ficou dessa experiência? Você ainda usa algo dessa época em seu trabalho?
Julia Castagno e Federico Aguirre também integraram o Movimiento Sexy. Com Julia, trabalho até hoje. A maneira que encontramos para nos auto-administrar e para nos projetar no exterior foi nos unirmos. Quando expusemos em Nova York no ano 2000, antes de ser Movimiento Sexy, todo mundo nos dizia que nossas obras dialogavam de um modo especial. Tínhamos muito em comum. A idéia do Movimiento era nunca perder as propostas individuais. Em uma exposição, podíamos apresentar uma obra em conjunto ou cinco obras individuais. O importante era que, juntas, essas obras propunham algo mais que a simples soma das partes. Unirmo-nos tornou-nos independentes do meio. Ganhamos força.