Biografia comentada Denise Mota, 2007
Depois da crise econômica de 2002, na esteira do tsunami institucional vivido pela Argentina no ano anterior, o Uruguai amanheceu mais vazio. A emigração chegou a níveis alarmantes: há estimativas de que mais de cem pessoas tenham abandonado o país diariamente naquele ano, a maioria com entre vinte e 29 anos. Os que ficaram não “apagaram a luz”. Arregaçaram as mangas para criar um modo de permanecer.
Floresceu, assim, uma geração empreendedora, desconectada da expectativa de benesse governamental e sintonizada com tendências e debates em voga no mundo. Nos últimos cinco anos, Montevidéu assistiu à eclosão de publicações, negócios e idéias que revitalizam distintos campos de atividade, de eventos de moda a centros independentes para a venda de obras de jovens autores. No embrião da criação artística, uma ala que representa “o pós-modernismo global”, como classifica a revista Artnet, saiu do gabinete para surpreender e dialogar com a sociedade.
Dessa “buena onda” estrutural, que resistiu ao furacão de início do século, faz parte Paula Delgado. Formada em economia, a artista – que, quando garota, e como várias meninas ao redor do mundo, tinha entre suas leituras juvenis as delicadas tirinhas da série Amar é... e que, adolescente, cantarolava George Michael, Madonna e Roxette ao som da programação da MTV – nasceu como criadora em inícios dos anos 2000.
O ponto de partida foram os experimentos teatrais dos tempos de faculdade. Daí partiu para a performance: “A estrutura teatral era rígida demais para mim, e a liberdade da performance com relação a tempos e espaço físico me permitia ser mais específica nos conteúdos e nas idéias que me interessava transmitir”. Logo agregou outras formas de expressão, como a fotografia e o vídeo. Em busca de linguagens e discursos, integrou, ao lado do primo Martín Sastre e outros artistas, o Movimiento Sexy, coletivo crítico e debochado, empenhado em colocar em relevo as estruturas do mercado de arte local.
“Acho que havia melhores expectativas naquela época, em 1999, 2000. Parecia que estava começando a surgir um monte de propostas, mas que depois desapareceram”, lembra. “A crise econômica provavelmente teve muito a ver com isso, muitíssima gente foi embora. Isso voltou a congelar o panorama artístico.”
O Movimiento Sexy, no entanto, aqueceu o cenário uruguaio e projetou Delgado, sobretudo internacionalmente. Candy, sua primeira criatura, formulada nesses tempos, visitou as páginas do The New York Times ao aterrissar em Manhattan com uma modernidade tão cuidadosamente construída como datada, baseada em um “American way of life” remodelado sob condições latino-americanas, anacrônico e deslocado.
“A recepção que meus trabalhos tiveram no exterior sempre foi melhor do que no Uruguai, sem exceções. Desde as primeiras obras que mostrei até o projeto mais recente. Quando aqui o público especializado ainda debatia sobre se o que fazíamos era arte ou não, lá fora processava-se cada obra rapidamente e havia um retorno. Isso é algo que me pesa no Uruguai, a falta de feedback. A realidade em Buenos Aires, por exemplo, é totalmente diferente. Todo mundo tem uma capacidade impressionante para absorver o que é apresentado. Entendem, processam e te devolvem algo. Dá gosto apresentar um trabalho em Buenos Aires, a energia que se move é muito forte.”
À intrépida Candy, seguiu-se a melancólica Mariana, garota de cadeira de rodas que, em seu quarto um tanto lúgubre, recheado de medicamentos e móveis velhos, fantasia o encontro romântico com o homem de seus sonhos, enquanto um hit do ídolo mexicano Luis Miguel, cantado por ela, embala o momento de devaneio.
Em um próximo passo, Paula renascia como uma Pollyanna encarnada em noiva-debutante, sua personagem em Feliz aunque no libre. Na obra, resgata o casalzinho desnudo de Amar é... para expurgar suas mensagens sexistas que inebriaram gerações. Depois disso, deixa de atuar em seus vídeos, abandona as personas e passa a propor reflexões sobre os temas que a intrigam – especialmente os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres – por meio de situações e pessoas pinçadas da realidade.
Dessa safra são os recentes Karina e Cómo sos tan lindo. No primeiro, a protagonista foi descoberta à uma e meia da manhã, no centro de Montevidéu, durante uma caminhada em que Delgado e sua amiga e colaboradora Julia Castagno recolhiam depoimentos de mulheres sobre como se sentiam e reagiam ao assédio sexual nas ruas, algo muitas vezes encarado como natural e sobre o qual costumeiramente não se fala. O trabalho foi exibido no Uruguai e na Argentina e selecionado para representar as artistas na Espanha, durante a 1ª Bienal São Paulo-Valencia, em 2007.
Em Cómo sos tan lindo, o objetivo era romper com outro tabu: colocar um grupo de homens em frente às câmeras, liberando-os do rol de machos todo-poderosos e realojando-os na posição de pessoas dispostas a fazer uma autocrítica de sua condição física, sem discursos ou papéis pré-concebidos. “O modo que uma mulher tem de olhar e retratar um homem não é o modo que estamos acostumados a ver. No imaginário, a representação do corpo de um homem é sempre construída pelos olhos de outro homem. Esse projeto é uma homenagem à beleza masculina e um espaço para poder falar disso com os próprios homens”, afirma Paula Delgado.
A autora mantém seus olhos em muitas partes. Para além das artes visuais, é professora na Universidad de la República, a universidade federal do Uruguai, e trabalha com produção de arte em publicidade, atividade que lhe fornece elementos para a criação artística. Em território acadêmico, publicou em 2005 La industria audiovisual uruguaya. ¿Realidad o ficción? Su impacto sobre las PYMES, escrito em conjunto com outros três pesquisadores do país.
Em 2008, realiza, em Viena, uma versão austríaca de Cómo sos tan lindo, com apoio do Ministério de Cultura do Uruguai. “A Europa tem um mercado de arte muito grande. Estão ávidos por propostas. A arte que fala de gêneros tem um lugar importante.”