Polifonia pan-africana encontra eco no Festival
Se no plano político são recentes os esforços brasileiros de estreitamento de relações o continente africano – a exemplo do envio de comitivas a capitais africanas em 2003 e a proposta feita este ano de criar programas de ampla cooperação –, no campo das artes visuais essa reaproximação vem sendo construída há mais tempo. Há mais de 20 anos, por exemplo, o Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil abre espaço para o Sul geopolítico do mundo, circuito em que o continente africano ocupa papel de destaque. Além de contar com nove artistas africanos nesta edição da mostra Panoramas do Sul, a África já foi foco central de duas exposições promovidas pelo Videobrasil em parceria com o Sesc (as mostras Africana e Pan-Africana de Arte Contemporânea).
Da seleção de artistas africanos em Panoramas, em meio à diversidade do vasto continente, pode-se observar relações entre obras, que passam pela escolha do vídeo como linguagem, e o discurso sobre as relações interpessoais. LucFosther Diop, artista do Camarões, vencedor Prêmio de residência FAAP, declarou: “Acredito que não existe nenhum tipo de segregação entre os seres humanos, todos somos iguais, independente de nacionalidade, sexo ou profissão”. Assim, o trabalho que ele apresenta coloca em foco não apenas a diferença entre pessoas e territórios, mas a dificuldade das relações interpessoais, a partir de uma metáfora visual: o vídeo We Are One é o registro, em quadro fechado, da mão do artista movendo-se em ritmo crescente, até que os dedos passam a ser friccionados freneticamente, causando um certo desconforto.
Outra semelhança presente nas obras desse bloco de artistas é a presença do corpo, que comunica tanto com o contexto amplo onde é inserido quanto com os estímulos sensoriais que recebe. As figuras flamejantes da obra Tomo, em sua obsessão para realizar suas atividades diárias, revelam uma personagem perturbada, que parecem lutar para subsistir em um vilarejo abandonado, tomado pelas almas daqueles que um dia ali viveram. Nesse vídeo, o artista Bakary Diallo, do Mali, ganhador do prêmio de residência no Instituto Sacatar, utilizou-se como base a palavra bambara, que designa, em dialeto local, o território que a guerra deixa deserto e devastado.
Assim como o corpo flamejante de Bakary, Kwa Baba Rithi Undugu (imagem abaixo), obra da artista Rehema Chachage, reposiciona o corpo em um novo contexto. Duas pequenas telas foram postas no interior de dois rádios. Os objetos construídos unificaram dois meios de comunicação: o radio e o vídeo. A figura humana presente nos vídeos transmitidos nas telas é inaudível. Os objetos são apresentados lado a lado, ressignificados com a fusão de duas frentes de comunicação, impossibilitada, porém, de alcançar seu receptor. Partindo da ideia do diálogo como fundamento da experiência humana, a obra fala da voz como símbolo de expressão pessoal e política, intensificada a partir da não comunicação e inutilização dos meios.
O poder de comunicar-se, todavia, tem uma ampla gama de possibilidades, através do corpo, a fala e a distância entre o locutor e o receptor. Em Malleable Tracks, vídeo do sul-africano Gregg Smith (video still abaixo), existe uma quebra proposital na mensagem. O filme busca inserir-se na configuração cada vez mais estreita entre a experiência física do tempo e espaço, e o modo pelo qual adquirimos conhecimento e informação. O espectador é apresentado a cenas ricas em associação estilística e encanto visual, que rapidamente se identificam com o suspense de Hitchcock. Esta imersão é minada por uma série de lacunas substanciais no desenvolvimento da trama, interferindo não apenas na interpretação da história, mas também criando ruídos na comunicação entre as personagens da trama.
Se Smith utilizou-se da narrativa e do texto como estratégia, o camaronense Em'Kal Eyongakpa optou por construir a partir de elementos figurativos e simbólicos, como um homem usando terno e pedalando um bicicleta, a atmosfera da sua videoinstalação Njanga Wata (detalhe abaixo). O título é uma tradução para o inglês pidgin (mestiço com línguas locais) de “rio de camarões”, nome utilizado por exploradores portugueses do século 15 para denominar a região. O trabalho relaciona a passividade do camaronês frente a um padrão de pensamento político que remonta à era colonial. Na obra, a imagem de um ciclista de terno que parece se dirigir a lugar nenhum ressalta uma exaustiva e permanente busca.
A África para além da exposição
Promover o debate do e sobre o Sul organiza e aproxima signos reconhecíveis, e propõe um novo entendimento das relações culturais, sociais e políticas. É isso que busca criar a programação do Festival, cuja presença africana vai além desses dez por cento de artistas em Panoramas do Sul: a curadora Koyo Kouoh, membro do júri de premiação e fundadora do Raw Material Center for Art, de Lagos, Nigéria, e o pensador camaronês Achille Mbembe, uma das maiores autoridades contemporâneas em estudos pós-coloniais, fazem parte do Festival, com participações em seus Programas Públicos.
Conheça os demais artistas e obras de Panoramas do Sul e acompanhe a programação do Festival na seção Agenda.